O Globo
Constituição de 1988 deu a juízes independentes o poder de decidir se as leis respeitam direitos fundamentais
Um Supremo ativista “usurpou” poderes do
Congresso? Ou congressistas conservadores estão apenas querendo “revanche”
contra decisões de que discordam? Para avaliar as recentes movimentações do
Congresso em temas como aborto e drogas, essas narrativas binárias não ajudam.
A Constituição de 1988 deu a juízes independentes o poder de decidir se as leis respeitam direitos fundamentais como igualdade, liberdade e saúde. A aplicação desses direitos sempre será controversa. Decisões judiciais sobre temas que dividem a sociedade também gerarão, elas mesmas, reações fortes. Isso não é sintoma de alguma disfunção no STF. Seu papel é decidir essas controvérsias com independência da política e com base na Constituição — mesmo sem conseguir convencer cidadãos, deputados e senadores a mudar de ideia.
Esse é o sistema vigente, desenhado em 1988 e
várias vezes ajustado pelo próprio Congresso. É hoje adotado, em linhas gerais,
na grande maioria das democracias. Quem ataca o STF só por entrar em temas como
drogas ou aborto no fundo discorda desse sistema (ou não compreendeu suas
implicações). Se um tribunal constitucional não pode discutir que limites as
leis podem impor à liberdade de expressar certas ideias, de consumir certas
substâncias ou de conduzir uma gravidez a termo, então essa instituição serve para
muito pouco. Teríamos aqui “revanche” não contra o STF, mas contra uma decisão
dos(as) constituintes de 1988.
Mas o fato de, no nosso sistema, o STF ter
esse poder em tese não quer dizer que os(as) ministros(as) sempre o usarão
adequadamente. Juízes têm seus limites e, para além do tema que decidem,
importa como decidem.
Discutir se a Constituição protege algum
espaço de autonomia individual para consumir drogas é, sim, típica pauta de um
tribunal constitucional. Mas é preocupante a desenvoltura legiferante com que
vários ministros debatiam a quantidade adequada para caracterizar a posse para
consumo próprio. Nesse tema, a Constituição certamente deixa espaço a
diferentes e complexas escolhas envolvendo custos e benefícios na promoção de
segurança e saúde públicas. Vários ministros pareciam mais preocupados em
encontrar o “melhor” modelo do que em traçar os limites constitucionais para
escolhas políticas do legislador. Considere-se, como contraste, a proposta do
ministro Edson Fachin de fixar prazo para as autoridades políticas definirem a
quantidade que distingue consumo pessoal e comercialização.
Também é um dado do nosso sistema que o
Congresso pode aprovar novas leis e emendas respondendo a decisões do STF. Em
2017, foi aprovada emenda autorizando a prática da vaquejada, que o tribunal
havia declarado inconstitucional. Não houve, na época, acusações de usurpação
judicial, de revanche política ou de ataque às instituições. Sem dúvida, como
qualquer lei nova, essas reações podem ser péssimas para o país. Podem até ser
inconstitucionais — e, aqui, a bola voltará ao STF.
Contudo, na atual reação legislativa sobre
aborto e drogas, a crítica institucional a um STF “legislador” soa hipócrita.
Para muitos congressistas, trata-se de oportunidade de, capitalizando a
insatisfação de seu eleitorado com o tribunal, tentar tornar a legislação
vigente ainda mais conservadora. Querem impedir o aborto até em hipóteses hoje
legais e amarrar legisladores futuros já criminalizando, na própria
Constituição, a posse de qualquer droga. Não são defesa conservadora do statu
quo diante de incursões judiciais, mas sim ofensivas reacionárias. Nesse
cenário, se o STF subitamente declarasse que a Constituição exige criminalizar
o aborto mesmo em caso de estupro e punir com prisão usuários de maconha,
quantos congressistas hoje indignados não estariam louvando a sabedoria dos
juízes? Há, sim, críticas institucionais pertinentes a fazer ao STF. Mas, aqui,
as reações do Congresso expressam mais oportunismo político que preocupação com
os limites de nossas instituições.
*Diego Werneck Arguelhes é professor
associado do Instituto de Ensino e Pesquisa (Insper) e doutor em Direito pela
Universidade Yale (EUA)
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