quinta-feira, 11 de julho de 2024

Eduardo Belo - Um prêmio para Estados endividados

Valor Econômico

Sinalização do projeto de Rodrigo Pacheco é de que o compromisso fiscal do país continua frouxo e ao sabor da consciência e conveniência de quem está no cargo

O Brasil tem um histórico de leniência com a questão fiscal, em todos os níveis da administração pública. A forma paternal como a União trata os governos regionais muitas vezes estimula a inconsequência e, volta e meia, resulta em desequilíbrios profundos nas contas de Estados e municípios.

A nova rodada de renegociação de dívidas dos Estados que se desenha desde o início do governo Lula não é muito diferente. Mas a proposta do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, para favorecer algo como R$ 700 bilhões em dívidas soa como uma prêmio para filhos pródigos.

O projeto de lei de Pacheco aprofunda benefícios que o próprio Ministério da Fazenda estava disposto a conceder. A redução do indexador de IPCA mais 4% para IPCA puro e simples, por exemplo, é praticamente a institucionalização do juro real zero, algo bastante fora da realidade brasileira.

A proposta cria um fundo de equalização, para o qual será destinado um ponto percentual da redução dos juros dos Estados que aderirem, cujos recursos serão partilhados. O economista Felipe Salto, da Warren Investimentos, classificou a iniciativa como “jogar dinheiro pela janela”.

Além disso, o benefício originalmente proposto de reduzir a conta para quem investisse em educação profissionalizante foi desfigurado. Pela proposta, o governador pode decidir se investe em educação, infraestrutura e segurança. O país precisa desses investimentos. Mas não entra na discussão o fato de não terem sido concretizados antes de se tornarem prementes nem que agora entram no cenário como forma de barganha para aliviar contas que não foram pagas - ou que não se desejam pagar.

A edição do Valor desta quarta-feira, 10, indica a insatisfação da Fazenda com a proposta. Reservadamente, integrantes da equipe econômica classificaram o projeto de lei como “longe do ideal” e capaz de comprometer o fluxo financeiro.

A proposta traz também a possibilidade de ceder à União ativos que abatam parte da dívida. Parece cilada.

Até o início da década de 1990, o principal ativo dos Estados eram suas instituições financeiras. Bancos estaduais serviam para tudo, incluindo fazer política clientelista, financiar projetos pessoais e cavar o profundo buraco fiscal dos Estados.

Em 1993, crise fiscal e hiperinflação conduziram a uma renegociação de dívida para alguns governos regionais. A situação geral piorou e, entre 1997 e 1998, o buraco era tão fundo que o país se viu compelido a encontrar uma solução. As dívidas de 23 Estados, do Distrito Federal e de mais de uma centena de municípios foi renegociada, assumida pela União - que tornou-se credora - e esticada por 30 anos.

Em seguida, os bancos estaduais se tornaram alvo de um processo de limpeza. Dos 32 que havia, 20 foram liquidados pelo Banco Central ou privatizados. Os Estados perderam sua retroescavadeira, mas alguns mais determinados continuaram com pás a cavar fossos fiscais.

Em menos de 20 anos, a solução fez água. Em 2016, o Supremo Tribunal Federal favoreceu governos regionais ao decidir que as condições da dívida estavam então além da capacidade de pagamento. Governadores ganharam o direito de pagar a União com juros simples e livres de punições.

O STF deu prazo para que as partes repactuassem o débito. Assim, a União alongou o financiamento por mais 20 anos - e os 30 anos originais se tornaram 40 - e ainda concedeu oito meses de suspensão dos pagamentos mensais. A contrapartida era de que as contas estaduais passariam a seguir a limitação de não elevar o gasto além da variação da inflação oficial do ano anterior.

Agora, com quatro grandes Estados - São Paulo, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e Minas Gerais - com a corda no pescoço, a proposta do presidente do Senado soa como uma licença para quem se descontrolou na hora de conciliar o que ganha com o que gasta. Situação que ofende quem fez sua parte. Sem contar que três dos quatro quase enforcados - a exceção é São Paulo - estão em Regime de Recuperação Fiscal, ou seja, já receberam ajuda e condições favorecidas para colocar as contas em dia.

Governadores no exercício do cargo dirão que herdaram a situação atual. Fato. Mas enquanto alguns fazem esforços para corrigir o problema, outros jogam a toalha - e a culpa - à espera de novo socorro. Parte deles se esquece que a herança às vezes veio de aliados políticos.

Há poucos dias, em conversa com o Valor, o economista Manoel Pires, coordenador do Centro de Política Fiscal e Orçamento Público do FGV Ibre, comentou que a Lei de Responsabilidade Fiscal está envelhecida e precisa ser modernizada. A lei não é tão velha, acabou de completar 24 anos. Mas, com todas as salvaguardas, não tem sido capaz de conter sucessivos deslizes nas contas públicas, em especial nos governos regionais.

Ainda que a proposta de Pacheco não venha a ser aprovada como está e seja amenizada, a sinalização que ela traz não é das melhores. Praticamente sem ter de apresentar contrapartidas, Estados com contas deterioradas limpam sua barra, governadores continuam tocando seus mandatos, e o compromisso com a responsabilidade fiscal continua frouxo e ao sabor da consciência e da conveniência de quem está no cargo. A conta fica com a União, ou seja, para contribuintes do país inteiro.

 

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