O atual paradigma de repressão e punição tem se mostrado ineficiente na redução do consumo e no combate ao poder do tráfico, nesse contexto, é crucial considerar uma abordagem centrada na redução de danos, encarando a política sobre drogas como uma questão de saúde pública, a liberação total do consumo de drogas permitiria ao Estado não apenas certificar a qualidade e segurança dos produtos, mas também oferecer tratamento e apoio aos usuários, ao invés de simplesmente encarcerá-los conforme feito hoje.
Uma das vantagens evidentes dessa mudança de abordagem é a oportunidade de utilizar os recursos provenientes da venda legal das drogas em campanhas de conscientização e prevenção, essa verba poderia ser direcionada para essas campanhas alertando sobre os riscos do consumo, informando sobre os serviços de saúde disponíveis e reforçando a segurança pública em áreas afetadas pelo tráfico de drogas, os números do investimento em prevenção e tratamento podem ser o divisor de águas na eficácia dessas ações.
A redução da violência associada ao tráfico é um dos principais argumentos favoráveis à liberação da comercialização sob guarda do Estado, o controle absoluto dos traficantes sobre o mercado ilícito das drogas resulta em conflitos violentos entre gangues e exploração de comunidades vulneráveis, ao transferir o monopólio dos entorpecentes para o poder público, a expectativa é diminuir a violência e garantir a segurança do conjunto da população. Este movimento não apenas debilitaria o poder econômico dos traficantes, mas também interromperia o círculo vicioso de financiamento para armas, corrupção e a criação de um estado paralelo.
Exemplos internacionais, como o Uruguai, Países Baixos e Portugal, oferecem lições valiosas sobre os benefícios da legalização das drogas. O Uruguai, ao legalizar a maconha em 2013, testemunhou uma redução significativa no mercado ilegal e uma alocação eficiente dos recursos arrecadados. Portugal, após descriminalizar o consumo e posse de drogas em 2001, registrou uma diminuição nas mortes relacionadas ao consumo e um aumento no acesso aos programas de tratamento.
O reconhecimento do retumbante fracasso da abordagem atual de guerra às drogas é inevitável, o consumo continua a crescer, e a violência associada ao tráfico tornou-se uma ameaça constante, a persistência desse modelo só pode ser compreendida como atendendo apenas agendas ideológicas, considerando que quaisquer outros programas com um histórico tão grande de falhas como esse, já teriam sido descontinuados indubitavelmente. A liberação do consumo de drogas, apesar de sua natureza controversa, representa uma oportunidade de romper com esse ciclo, direcionando o controle das drogas para o Estado e com isso todo poder econômico advindo desse.
O receio de que a legalização incentive o consumo é um dos principais argumentos contra essa proposta, o que é justo, no entanto, estudos indicam que a legalização das drogas pode, a longo prazo, reduzir o consumo ao diminuir o estigma associado ao uso de drogas e proporcionar aos usuários acesso a tratamento e apoio, outra preocupação justa por parte da população, é que a liberação facilitará muito o acesso às drogas neste novo cenário, essa questão é a mais fácil de responder, quem hoje já não tem acesso amplo a drogas ilícitas em qualquer cidade do país? Ocorre que, para adquirir, os usuários são submetidos a locais de extrema criminalidade e produtos sem nenhuma qualidade que põem em risco a vida destes.
A liberação da venda e do consumo de drogas é, sem dúvida, uma proposta complexa que gera inúmeros estigmas, no entanto, não pode ser ignorada nem ter seu debate tolhido por fundamentalismos, sejam esses políticos ou religiosos. O atual modelo de guerra às drogas está fadado ao colapso, ou melhor, já colapsou, e a persistência nesse caminho apenas perpétua o sofrimento da sociedade, mortes desnecessárias e gastos enormes de um aparelho de segurança que apenas enxuga gelo e que finge agir quando há muito pouco a fazer.
Transferir o controle das drogas para o Estado não apenas enfraquece o tráfico, mas também oferece ao governo a oportunidade de gerenciar a produção, garantindo a qualidade e a segurança dos produtos, e o mais importante os recursos gerados saem das mãos dos criminosos e podem ser investidos em programas de conscientização, tratamento e reforço da segurança pública, quebrando o ciclo de violência do tráfico e asfixia economicamente as organizações criminosas, emergindo como uma possível alternativa para desmantelar a enorme rede do crime organizado.
Numa sociedade em que as drogas são legalizadas e o tráfico tolhido de grande parte de seus recursos, surge uma oportunidade única para repensar não apenas essas políticas sobre drogas, mas também as estruturas éticas que orientam nossas escolhas sociais, a autonomia individual, muitas vezes eclipsada em meio a abordagens repressivas, emerge como uma questão central, a capacidade dos indivíduos de tomar decisões bem informadas sobre seu próprio consumo ganha destaque, desafiando concepções prévias de controle desmedido do Estado sobre comportamentos pessoais, no entanto, essa autonomia precisa ser cuidadosamente equilibrada com a responsabilidade coletiva de proteger todos os grupos vulneráveis.
Questões éticas que permeiam o papel do Estado na regulação do comportamento humano, a construção de uma cultura de responsabilidade individual e coletiva, bem como medidas específicas para comunidades marginalizadas e jovens, demandam uma reflexão constante, em última análise, a legalização das drogas propõe não apenas uma mudança nas políticas, mas um convite para uma transformação profunda na maneira como a sociedade concebe, aborda e equilibra as complexidades éticas inerentes ao consumo de substâncias psicoativas, mas também como enfrenta sua própria liberdade responsável. Este debate complexo é fundamental para moldar um futuro onde as políticas sobre drogas se alinhem com a busca por uma sociedade mais segura, saudável, justa e humanista, e para isso, desobstruir esse debate é fundamental.
* Advogado,
ex-Secretário Executivo de Direitos Humanos de Pernambuco
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