Das lembranças de tê-la visto, lá atrás, e do fato de agora ter buscado ler breves comentários sobre a trilogia, fixei-me numa hipótese de interpretação (decerto uma entre inúmeras que circularam à época): a de que, nos três filmes, as metáforas sugerem a impossibilidade de aproximação a esses ideais, caso desejados em estado de pureza ou plenitude. Tentativas levariam a experiências com obstáculos embaraçadores de sua realização. A liberdade (azul), diante de perdas e seus danos, não seria possível em isolamento face ao mundo; a igualdade (branca), perante diferenças de condição, não seria praticável sem os diferentes experimentarem, no sentimento, a condição do outro; a fraternidade (vermelha), na presença de sentimentos de solidão, ganharia sentido em relações insólitas, condutoras à compreensão compassiva de paralelos também não previstos entre dores do outro e as suas próprias.
A ativação da memória dessa trilogia
cinematográfica virou propósito depois que recebi de amigos uma profusão de
textos, sons e imagens sobre o segundo turno das eleições francesas. No farto
material, aparece muito em foco a figura de Jean-Luc Mélenchon, o líder da
“França insubmissa”, maior agrupamento da recém-formada Nova Frente Popular, a
coligação da esquerda, que foi a mais votada naquele segundo turno. Conjunto de
frases solteiras do personagem (ou a ele atribuídas), retiradas de discursos de
improviso - atuais e antigos – ou de declarações instantâneas, assim como
vídeos politicamente orientados, a favor e contra, editados para aclamar o
líder ou assustar a plateia. No balaio, uma imagem sonorizada em que ele está
puxando e regendo um coro cantante do hino da Primeira Internacional. A imagem
de multidão sugere que o contexto é a comemoração da vitória e que ela, a
multidão recém saída das urnas, cantava o hino revolucionário com o mesmo ardor
do orador.
A insegurança corrente para com a veracidade
de quase tudo e um trecho de conteúdo anacrônico da fala do orador levaram a
uma investigação, em conjunto com o amigo que me havia enviado o vídeo. Ficamos
então sabendo que o fato se deu em 2017 e que o evento então celebrava o quase
sesquicentenário da Comuna de Paris. Canção, coro e maestro são reais, mas o
contexto sugerido não era veraz. A insinuação funcionou porque o vídeo foi
exumado no domingo e estava no X de Mélenchon.
Tiro no pé ou não, era óbvia propaganda de uma suposta
“contemporaneidade do não coetâneo”.
A real grandeza das luzes de uma nova estrela
Tudo isso direciona aquele político ao
destino de celebridades que já não podem controlar a apropriação imagética de
suas ideias por vários agentes, com distintas intenções e para diversos fins.
Ao analista convencional (analógico?) que quer analisar estratégias de um ator
político, falta o discurso estruturado e abrangente, com começo, meio e fim -
por escrito, de preferência ou, ao menos, em vídeo integral, veiculado em
fontes isentas ou idôneas. Na falta da
imprescindível matéria prima autêntica, o jeito é usar lupa genérica e
interpretar a partir do jeito geral da coisa. O discurso triunfante, comum aos
fragmentos de fala, sugere uma hiperbólica celebração de uma conquista
eleitoral contingente, comunicada como prenúncio de uma ruptura política e civilizatória.
Esta seria uma necessidade social pura e plena, termos incompatíveis com a
trilogia de Kieślowski, tal como aqui interpretada.
É possível realçar fragmentos libertários,
anunciadores de um tempo de alívio de tenazes da sociedade do trabalho para
semear uma humanidade nova, ecologicamente apaziguada. Conteúdo oposto ao
discurso do libertário de direita, no qual o de esquerda censura o desejo de
liberdade irrestrita do indivíduo despótico de prevalecer numa competição de
egos que premiará os mais fortes. Em lugar disso propõe que a felicidade humana
seja alcançada através de um projeto de ação coletiva. Felicidade pura e plena,
a humanidade liberta e ligada pela amizade. Aos inimigos – desumanos - a lei.
Se é de liberdade, igualdade e fraternidade que se fala, experimentos
antipolíticos inspirados por ambas as modalidades de atitude libertária tiveram
resultados positivos pífios (para dizer o mínimo e nem aludir a perversões), se
comparados, no território da mútua imperfeição, a obtidos em sociedades que
escolheram democracias representativas, assumidamente incapazes de prometer
pureza e plenitude.
De outro lado, no mesmo discurso triunfante
há fragmentos autocráticos que o fizeram merecer, em algum lugar, a benévola
qualificação de bravo. Encenam um ultimato dirigido ao presidente Macron, para
que ele admita a derrota e, portanto, curve-se à vontade do soberano. O modo
imperativo mostra a convicção do líder emergente de que uma interação política
complexa entre atores políticos que horas antes haviam se dirigido aos
eleitores como aliados para isolar o perigo autocrático da extrema-direita é
questão de causa e efeito, a ser resolvida sem tempo e lugar para nuances.
Enquanto lia isso, recebi de presente, do mesmo amigo que me enviara o vídeo
extemporâneo, uma letra de música do poeta Cacaso. Um dos versos é título de
uma faixa e de um álbum inteiro de Francis Hime: “se porém fosse portanto”.
Somou-se à trilogia de Kieślowski, servindo como outra luva luxuosa para vestir
este comentário.
Aquele simbolismo do político regendo o hino
é forte, em 2017 ou agora. Expressa a proposição ideológica (que por ora não
parece inspirar uma vontade política da frente de esquerda, em seu conjunto) de
substituir as franças histórica e atual por uma república alternativa, cujo
hino não seria a Marselhesa e cuja bandeira deixaria, virtualmente, de ser
tricolor e nacional. A alusão musical à Comuna de Paris (1871) pode ser
colocada na conta de uma emoção celebrativa no presente que homenageia um
passado morto e, assim, a cena ser vista como metáfora catártica, mas
politicamente inocente, como intenção, embora facilmente manipulável por uma
ultradireita bem viva, nas intenções e nos gestos.
A dimensão política que insiste em se mostrar
ao lado da aparente inocência é o fato de a catarse não ter sido coisa de
plateia, mas proveniente do palco onde se apresentava um líder. E sobra ainda
lugar para notar o paradoxo entre a sonora mensagem internacionalista e o apelo
nacionalista que compõe a atitude política antiglobalista daquela parte da
esquerda francesa. Nota dissonante que, como um fantasma, nunca se afastou da
alma dividida de movimentos, partidos e estados que, seja na antiga Rússia, seja,
ainda hoje, na nossa América Latina, ou numa “outra” Europa, insubmissa e de
olhos fixos no levante, invocam Marx como antagônico à cultura democrática
transmitida pela política moderna.
Supor absoluta e classista uma maioria
eleitoral conquistada em contexto de pluralismo funciona como insubmissão a
este e como insinuação de uma França com bandeira de uma só cor. Metáfora de
sentido denotador de uma pretensão hegemônica, desafiadora da mensagem
inequívoca dos eleitores franceses, que recusaram dar a qualquer força
política, em particular, uma maioria sequer próxima à maioria política que a
Constituição do país estipula como necessária para que um governo atue sem
risco de não confiança do Parlamento. A este a regra concede a prerrogativa de
aceitar, ou não, um governo de maioria simples. O entendimento político é que
decidirá se essa prerrogativa da maioria parlamentar - ou mesmo a do presidente
da República de chamar a frente vitoriosa para formar o governo - será usada
para aceitar ou recusar um governo minoritário de esquerda, caso o entendimento
não produza uma maioria. No caso de aceitação de um governo minoritário na
Assembleia, o presidente da República poderá convocar novas eleições, em um
ano. Claro que no caso de a esquerda decidir por um governo minoritário, o bom
senso e o compromisso com as regras, com a democracia e com a governabilidade
mandam que o presidente aceite essa decisão, sem precisar curvar-se. Mas se um
ano é pouco para uma força política dizer a que veio, pode ser uma eternidade
para o país, se um governo parlamentar sem apoio parlamentar tiver que lidar
com paralisia decisória e insatisfação social. Em contextos assim, o pavio do
sistema semipresidencialista é mais curto que o do presidencialista. A
esquerda, se estiver mesmo pronta e disposta a governar, será a primeira a ter
interesse em poupar a França desse cenário.
A real grandeza da
nova frente popular
Tudo isso está certamente em cálculos da
esquerda vencedora nas urnas, sugerindo-lhe moderação. Mas transparece, nas
falas iniciais de Mélenchon, o ânimo de quem parece ter conquistado maioria
absoluta. O vencedor de fala invencível. Para medir até que ponto é só apelo
retórico ou um programa voluntarista que se quer visionário, pois enxerga
portantos em poréns, é preciso que também a plateia preste atenção em números
da vitória da “França Insubmissa” e compreenda sua dupla relatividade, uma
interna e outra externa ao conjunto da esquerda reunida na “Nova Frente
Popular”.
A maioria é relativa, internamente, porque a
“França Insubmissa” de Mélenchon expressa 40% da força parlamentar que a frente
de esquerda conquistou nas urnas. Logo a seguir - com 32% dos 182 deputados que
essa frente elegeu - vem o tradicional PS, partido de esquerda moderada, de
inclinação social-democrata e alguma tradição europeísta. Com longa experiência
de poder e chances de vir a ter um quadro seu como primeiro-ministro do governo
a ser formado, o PS foi uma das duas forças que cresceram, nessas eleições,
dentro da esquerda. A outra foi o partido dos ecologistas, que também poderá
vir a indicar alguém para aquele cargo. Enquanto a FI estacionou, perdendo uma
cadeira, ambas mais que dobraram o número de assentos que ocupam na composição
atual da Assembleia. O PS sinaliza recuperação, após a queda livre sofrida em
2017. O peso parlamentar dos ecologistas também está se tornando ponderável (15
% da frente), com uma bancada três vezes maior que a do longevo e lendário PC,
cuja representatividade recuou mais, como parte de um declínio sustentado no
tempo.
É possível dizer, portanto (e aqui não existe
porém), que se está diante de uma consorciação em equilíbrio de forças, viés de
moderação e que, por isso, talvez esteja também em processo de negociação
interna. Por mais que os holofotes ainda acendam sobre declarações de
Mélenchon, parece provisória a sua condição de porta-voz do conjunto. A
situação não facilita longa vida a arroubo hegemônico da força individualmente
maior, sob pena de quebrar uma aliança muito recente, formada praticamente no
improviso, para responder ao desafio da convocação precoce das eleições, pelo
presidente Macron. Faz pouco tempo que as duas maiores forças hoje aliadas
nessa frente estavam divididas quanto à questão do conflito Israel x Hamas e
outros temas importantes do contexto europeu. A unidade recente é importante
para todos e requer zelo pluralista dos que compartilham a vitória.
A maioria é ainda mais relativa,
externamente, se medido o tamanho parlamentar da Frente Popular (32% da
Assembleia). É uma esquerda só um pouco maior que aquela atuante na Câmara dos
Deputados brasileira. O “Juntos”, coligação centrista de Macron, obteve 29% e a
ultradireita 25%. Se observarmos, em vez dos assentos, os votos in natura, veremos
que vieses do voto distrital em deputados, em dois turnos e com sistema de
apuração majoritário situaram o peso parlamentar das coligações de centro e de
esquerda em patamar acima do seu peso eleitoral, dando-se o contrário com os
radicais de direita. Um governo resultante de um difícil entendimento pleno
entre a esquerda e o centro alcançaria maioria segura de pouco mais de 60% dos
votos parlamentares, representando, diretamente, cerca de 50% dos eleitores. Os
números seriam talvez ainda mais problemáticos para a popularidade potencial do
governo a ser formado se se pudesse descontar o fenômeno do “voto útil”, que
terá funcionado mais contra a ultradireita. Mas não se compra pelo valor de
face o alarde que a propaganda populista tem feito sobre isso. O voto útil
também pode ter atuado (pesquisas já possivelmente no forno poderão confirmar
ou desprezar essa conjectura) a favor dela. Caso de distritos em que uma candidatura
de centro - colocada em terceiro lugar, no primeiro turno, com mais de 12,5%
dos votos e, assim, classificada, pelas regras francesas, ao segundo turno -
tenha sido retirada em favor de uma da esquerda, mas parte dos eleitores não
seguiu o gesto e preferiu votar nos extremistas.
Uma cena e um script à espera de um novo ator
A distribuição equilibrada de peso
parlamentar entre os dois campos políticos que, aliados no segundo turno,
barraram o acesso da extrema-direita ao governo demonstra, claramente, que a
esquerda, se lhe couber - como é esperado - formar um governo para conviver com
o presidente, terá que optar entre compô-lo com parte do próprio centro de
Macron, ou só com a minoria parlamentar de esquerda.
É compreensível que opte pelo segundo
caminho, pois é extenso e intenso o seu contencioso com a política interna do
presidente. Parece irrealista pensar que forças políticas da Frente Popular,
mesmo as moderadas, renunciem a fazer oposição a Macron. Entrariam em
contradição com a plataforma eleitoral que lhes deu a perspectiva institucional
de formar um governo no sistema de poder compartilhado com o presidente. Mas no
cenário com um governo minoritário torna-se, por suposto, ainda mais importante
que o cargo de primeiro-ministro seja ocupado por uma liderança moderada,
capaz, não só de unir a frente popular, como de estabelecer diálogo consistente
e pragmático com o presidente e os demais blocos do Parlamento. Não é pouca
coisa, ainda mais na presença de uma sociedade em fricção.
Para além de cálculos quantitativos - em si
relevantes, por pragmatismo e por respeito às urnas – há o êxito pedagógico,
pela atitude política e pelos resultados efetivos, do entendimento político
entre esquerda e centro, que fez a aliança republicana promover, em uma semana,
uma admirável reviravolta eleitoral. A remoção de situações de disputa
triangular em centenas de distritos pela retirada, conforme a correlação de
forças no local, de candidaturas de algum dos campos em favor do outro rebaixou
a competitividade de candidatos de extrema-direita, sem enfraquecer algum dos
polos democráticos. A resultante nacional de disputas distritais bipolares foi
um triângulo quase equilátero na distribuição de mais de 80% dos assentos
parlamentares, pela qual a extrema-direita acabou em terceiro lugar.
Dessa vez o chamado cordão sanitário contra o
extremismo trabalhou em condições mais delicadas e gerou uma fragmentação mais
acentuada do que a habitual em sistemas de voto majoritário, o que pode trazer
mais dificuldade ao polo vencedor para montar um governo. Em contrapartida, o
movimento unitário de grande política produziu efeito bloqueador do acesso da
ultradireita ao governo sem impor uma bipolarização extrema, com anulação do
centro. Nisso talvez haja êxito da estratégia de Macron de antecipar as eleições
parlamentares, compensando o fato da votação da esquerda, no primejro turno,
ter ido além da encomenda, mercê da sua unificação. O entendimento republicano
entre esquerda e centro pode, se prosseguir na hora da montagem do novo governo
(seja ele minoritário ou de ampla coalizão), evitar atitudes de confronto, como
respostas de ambos os campos a esse efeito não previsto.
Mesmo com todas essas possibilidades que
confesso não saber avaliar com precisão e de modo conclusivo, é evidente que a
força eleitoral da direita radical não pode ser subestimada. Ela pode aumentar
com o fracasso do governo de esquerda, daí ser racional o centro não bloquear
seu caminho.
No xadrez pós-eleitoral, Macron joga com as
brancas
Requer-se de Macron uma capacidade de
avaliação realista, de prospecção estratégica e uma flexibilidade tática
equivalentes às que se requer da frente de esquerda. A análise precisa ter em
conta que a sua manobra de antecipação das eleições (sobre a qual é precipitado
já ter juízo formado quanto a acertos e equívocos incidentes sobre o futuro da
República, do povo francês ou dele próprio), graças, no apagar das luzes, à
aliança republicana aceita pela esquerda para pavimentar sua própria ascensão
como alternativa ao extremismo populista, pode ter atenuado, mas não evitou uma
forte derrota. Afinal, o seu campo político perdeu quase 80 assentos no
parlamento. Reconhecer isso implica em fazer uma inflexão política ao centro,
alguma espécie de revisão no deslizamento à direita que vem marcando seu
governo de modo gradual, mas contínuo. Por isso cabe a imagem de que ele joga
com as pedras brancas.
Espera-se que uma eventual inflexão inclua,
objetivamente, disposição de alterar políticas presidenciais para estabelecer
um ambiente propício a um entendimento. Se uma premissa óbvia é que com o
agrupamento de Mélenchon é difícil ter conversa, ela só poderá ocorrer com
esquerdas mais moderadas. Do ponto de vista de Macron, a opção de agregar ao
bloco do atual primeiro-ministro, técnicos, ou mesmo os ecologistas em
separado, para formar um governo minoritário de centro, contrariando a maioria
das urnas numa eleição que teve 67% de participação, é risco político imenso.
Seria truncar o jogo e assistir dois extremos, cada vez mais irresponsáveis,
crescerem por fora.
Esquerda moderada para ser interlocutora real
quer dizer PS e ecologistas juntos, não um ou outro. Se as duas agulhas
ganharam balas, é com elas a conversa. Precisa ser respeitosa, porque não será
fácil tirar o PS da oposição ao palácio presidencial. Pelo que se tem lido, o
fundamental do contencioso desse partido com Macron está na política doméstica.
Em política externa, pelo que se diz, o PS briga mais com Mélenchon do que com
Macron. E a coisa pegaria mesmo é na reforma da previdência, grande fator da impopularidade
do presidente, que ele procurou compensar (do ponto de vista eleitoral e da
comunicação política) com uma política imigratória acusada de mimetizar
politicamente a direita. Difícil supor entendimento positivo com os vencedores
da eleição se essas duas políticas forem intocáveis.
Na reforma da previdência, Macron avançou a
idade mínima de 62 para 64 anos, o PS quer reduzir para 60. Até que ponto
argumentos do presidente são estruturais, sistêmicos (econômicos e
administrativos) e até que ponto são plataforma política de um líder cuja base
migrou, ao longo do tempo, do centro para a direita? Admito que não sei, nem
adivinho. É possível que haja de tudo um pouco. Como em qualquer país, para
saber é preciso conhecer a dinâmica demográfica da França, a situação fiscal do
Estado e as condições de financiamento sustentável de políticas sociais que
sejam tão importantes quanto a previdenciária. Tema para franceses bem
informados, sobre o qual aqui é possível falar por hipóteses.
Se o estrutural é o que de fato comanda o
argumento de Macron, então é melhor e mais responsável esquecer o acordo com a
esquerda. A vitamina eleitoral recente não torna racional que ela altere o seu
roteiro crítico. Nesse caso, restará ao presidente travar o bom combate, deixar
a esquerda na oposição a si e coabitar com ela, numa relação a mais civilizada
possível. Mesmo em presença de dissenso sobre políticas públicas, não perde
sentido o consenso democrático sobre defesa das instituições e sobre métodos e
procedimentos de interação política. A
tradição republicana ensina que divergências (mesmo as mais acirradas) sobre
políticas públicas (mesmo as mais relevantes) não são argumentos para
deslegitimar oponentes. Democratas de esquerda, centro e direita são seres
vivos da democracia
Mas se a razão predominante da reforma da
previdência de Macron é programática, para consolidar sua relação eleitoral com
uma direita ideológica que ele quer disputar com a extrema-direita, então
talvez caiba pensar em suspender a reforma para debater mais e se chegar a uma
solução socialmente mais aceitável. Um meio termo que mantém por ora o status
quo e pode levar o PS a colaborar. O duelo com a extrema-direita precisaria
acontecer através do prolongamento da vida útil da aliança republicana.
Claro que Macron pode seguir outro caminho,
que nem o de estadista comprometido com uma reforma estrutural a ponto de
aceitar uma derrota eleitoral para quem a combater com mais eficácia, nem
também o de político pragmático, que busca o centro, alia-se à esquerda para
isolar a extrema-direita e planta um futuro social liberal para o centrismo,
como terceira via entre esquerda e direita populistas, identidade inicial do
movimento que ele fundou. O tal caminho distinto dos dois mencionados seria
usar prerrogativas presidenciais para truncar o jogo que as urnas puseram em
marcha, considerando ser possível manter sua inflexão à direita depois dos
resultados de domingo. Fazer de conta que portanto é porém, uma espécie de
oposto simétrico à atitude de Mélenchon querendo ver portanto onde há porém.
Para quem não nasceu nem vive na França, mas
sente amor pela democracia como cidadão do mundo, o descarte de ambos os
caminhos benignos para escolher o truque doméstico seria uma decepção, porque
feita pelo chefe de uma nação que conta, num mundo em perigo. Nivelado a
Mélenchon, na inflexibilidade política e na insubmissão ao recado pluralista
das urnas, deixaria sem resposta, também, a mensagem cosmopolita da bandeira
tricolor. Uma mensagem que a consciência democrática recebe interpretando cada
faixa da bandeira pela gramática da convergência: liberdade em parceria,
igualdade na diferença, fraternidade entre opostos. Tudo que extremismos
abominam.
*Cientista político e professor da UFBa.
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