O Estado de S. Paulo
Talvez Ortega e Maduro tenham contribuído,
involuntariamente, para o próprio amadurecimento da visão de mundo do governo
Lula
Dois países latinos são exemplares para
examinar as hesitações da política externa brasileira: Nicarágua e Venezuela.
Sandinismo e chavismo deslizaram rapidamente para clássicas ditaduras, e nosso
governo parece ter sido o último a ter-se dado conta disso. Foram necessárias
algumas pedradas para que a diplomacia brasileira mudasse, assim mesmo,
lentamente seu rumo.
O caso da Nicarágua tem menos repercussão. Ao
que tudo indica, a pedido do papa, Lula tentou libertar prisioneiros católicos
que o governo de Manágua mantém ilegalmente. Certamente, tinha na memória os
laços com um sandinismo ainda revolucionário.
A boa vontade de Lula com Daniel Ortega se expressa numa entrevista em que questionaram o tempo de presença de Ortega no poder, e Lula o comparou a Angela Merkel. Se ela pode, por que não ele?
Tanta empatia não foi correspondida. A
resposta de Ortega ao pedido de libertação de presos foi a expulsão do
embaixador brasileiro em Manágua, Breno Souza da Costa, sob o ridículo
argumento de que faltara a uma solenidade que comemorava a revolução. Naturalmente,
o Brasil teve de expulsar também a embaixadora da Nicarágua, Fúlvia Patrícia
Castro.
Esta semana, a Nicarágua não libertou apenas
um, mas 135 presos políticos a pedido dos EUA. Não foram argumentos
sentimentais, mas os únicos que podem convencer Ortega: um bloqueio econômico
que pode aprofundar a pobreza do país.
O caso da Venezuela é mais importante. O
papel do Brasil é mais visível e temos fronteira comum e inúmeros interesses
que nos obrigam a manter relações diplomáticas.
Desde o princípio, Lula subestimou o
potencial de desgaste da relação com Maduro. Convidou-o ao Brasil, estendeu
tapete vermelho e deu a entender, num discurso, que os problemas da imagem da
Venezuela poderiam ser corrigidos com uma boa narrativa. O segundo passo foi
apostar nas eleições venezuelanas, a partir do acordo no Caribe que pressupunha
um processo democrático.
Maduro entendeu tudo isso à sua maneira.
Aceitou os termos do acordo, mas na prática os sabotou, sempre que necessário.
Começou invalidando a candidatura de María Corina Machado, que tinha condições
de derrotá-lo. Seguiu invalidando uma outra candidatura, até que a oposição,
finalmente, escolheu Edmundo González. Os EUA e a União Europeia se afastaram,
mas o Brasil manteve-se próximo do aliado.
No dia das eleições, o governo enviou Celso
Amorim, que disse que não seria observador, mas que levaria em conta o trabalho
do Centro Carter, especialista nessa tarefa.
Celso Amorim achou normal o processo do dia
28 de julho, mas talvez tenha dormido mais cedo, porque quando as urnas se
fecharam estourou o primeiro escândalo: a comissão de oposicionistas não
poderia acompanhar a apuração.
Verdade é que o Brasil, ao lado da Colômbia e
do México, pediu as atas para reconhecer a vitória de Maduro. Elas jamais
apareceriam.
Antes disso, mesmo o Centro Carter já
denunciava as eleições venezuelanas como irregulares. Muitos países
latino-americanos condenaram Maduro e defenderam a democracia como um valor. O
Brasil preferiu ser discreto e ocupar a posição de mediador.
Foi nessa posição que grande parte da
imprensa saudou o Brasil porque custodiou a embaixada da Argentina, protegendo
a vida de oposicionistas refugiados ali. Agora, Maduro retirou o último
benefício da simpatia brasileira, cancelando sua custódia sobre a embaixada
argentina e cercando o prédio com suas forças de segurança. O Brasil resistiu,
sairá apenas quando outro país assumir a custódia. Mantém dignamente sua
posição de mediador.
A questão que continua no ar é esta: valeu a
pena tanta complacência com Maduro ou teria sido melhor, desde o princípio,
assumir o verdadeiro papel de um líder regional e levantar a bandeira da
democracia?
Essa diferença entre um líder mediador e um
líder que defende valores coletivos é algo que nunca foi discutido neste caso
específico.
É natural que partidos de esquerda tenham
vínculos sentimentais. É compreensível que esses vínculos perdurem mesmo que as
posições políticas já não sejam idênticas, como no passado. Mas o problema
central é que não foi apenas a esquerda que venceu as eleições no Brasil. Ela
precisa compartilhar a política externa, torná-la o instrumento de uma frente
democrática, colocar em segundo plano sua visão nostálgica sem necessariamente
abrir mão dela, nos momentos de celebração e relaxamento.
Talvez Ortega e Maduro tenham contribuído, involuntariamente, para o próprio amadurecimento da visão de mundo do governo. Ortega pode ficar no esquecimento por um período, Maduro não. Ele continuará produzindo situações que influenciam o Brasil. A próxima é uma possível nova onda migratória, agora que o candidato eleito pela oposição se refugia em Madrid. Pesquisas indicam que cerca de 20% dos venezuelanos pretendem deixar o país. Será um grande desafio para o Brasil, a Colômbia e deve repercutir até nas eleições norte-americanas. Sem falar naquela velha pretensão de anexar Essequibo, moeda eleitoral, que pode voltar a qualquer instante.
Um comentário:
Jesus!
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