sexta-feira, 13 de setembro de 2024

Flávia Oliveira - A juventude ‘bet'

O Globo

Tão real quanto as chamas que destroem e a fumaça que varre territórios é a epidemia de apostas que assola o Brasil. A prática, que se expande em progressão geométrica, já produz reflexos na economia, na saúde e na política. É onda que alcança, principalmente, a juventude. Dos 52 milhões de brasileiros, predominantemente homens de baixa renda, que já efetuaram apostas esportivas em sites ou aplicativos, quase 21 milhões (40%) têm de 18 a 29 anos, segundo pesquisa realizada, no início de agosto, pelo Instituto Locomotivas. São moços que jogam por dinheiro, não por diversão. Imaginam a paixão e o conhecimento sobre futebol como ofício ou alternativa de investimento. Por impulso e perspectiva de prosperidade fulminante, também escolhem candidato a prefeito.

Nesta semana, a pesquisa Quaest para a Prefeitura de São Paulo mostrou crescimento das intenções de voto em Pablo Marçal (PRTB) na faixa etária de 16 a 34 anos, até então fortemente conectada a Guilherme Boulos (PSOL). Em agosto, era de 22% a proporção de jovens que declaravam voto em Marçal; passaram a 31% em setembro. O percentual do candidato de esquerda tomou o sentido inverso: saiu de 27% para 19%. Sugere a migração da sonhática calmaria para a (expectativa de) prosperidade galopante. Uma aposta carregada de adrenalina no “candidato bet”, aquele que promete riqueza fácil e rápida pela via do empreendedorismo e da fé, não necessariamente religiosa. Coisa de coach.

— Parece que Marçal traz à cena uma juventude cristã/evangélica que se empolga com a ideia de resolver a vida autonomamente. É menos uma mudança de lado em relação ao Boulos, mais uma juventude que se anima com a perspectiva de prosperidade, de autonomia, de poder decidir sobre si mesma. Marçal aciona esse grupo por meio da linguagem, da gramática religiosa. Apresenta-se como aposta muito potente no novo — analisa o teólogo Ronilso Pacheco, do Instituto de Estudos da Religião (Iser).

Não há pesquisa acadêmica a embasar a hipótese, mas ao jornalista cabe agrupar pontas soltas e provocar reflexões. A “juventude bet”, como passo a chamar, brotou da falta de políticas públicas dirigidas, de um mercado de trabalho que a confina à informalidade, aos baixos rendimentos, à escassez de oportunidades. No segundo trimestre, segundo o IBGE, a desocupação dos brasileiros de 18 a 24 anos foi de 14,3%, mais que o dobro da taxa nacional (6,9%). Um em cada cinco habitantes de 15 a 29 anos não estuda nem trabalha. São 9,6 milhões, a maioria mães adolescentes que precisaram abandonar a escola para assumir tarefas domésticas e de cuidado com filhos.

A partir da pandemia da Covid-19, assistimos à multiplicação do número de motoentregadores, predominantemente jovens periféricos submetidos a jornadas exaustivas, mal remunerados e sem rede de proteção social, mas que se veem, em larga medida, como empreendedores. São conectados, têm desejo de prosperar e de administrar o próprio tempo, valioso ativo. Vivem sob o impulso da aposta.

E assim o fazem. São homens 53% dos adultos brasileiros que já fizeram apostas esportivas em sites ou aplicativos. Quatro em cada dez têm até 29 anos; 79% estão nas classes C, D e E; 86% têm dívidas; dois terços têm CPF em cadastro de mau pagador. A pesquisa do Instituto Locomotivas permite inferir que há predomínio entre os apostadores de moradores de periferias, favelas, quebradas, bairros populares, territórios de classe média baixa. Nos últimos sete meses, estima Renato Meirelles, coordenador da pesquisa, 25 milhões de brasileiros tornaram-se apostadores:

— A Covid-19 demorou 11 meses para alcançar esse mesmo número de pessoas. Por isso não é exagero falar em epidemia, em risco de saúde pública.

A pesquisa mostra que sete em dez apostam ao menos uma vez por mês. Mais da metade (53%) joga para ganhar dinheiro; 45% já tiveram prejuízos; dois terços destinam parte ou todo o dinheiro que ganham com bets a novas apostas. Um terço já usou recursos de outras despesas para apostar. Há quem encare apostas como ofício decorrente do conhecimento esportivo; há os que veem como possibilidade de aplicação financeira, completa Meirelles.

Economistas do Banco Itaú estimaram que, em 12 meses até junho passado, os brasileiros destinaram R$ 68,2 bilhões a apostas e taxas de serviço. Ganharam R$ 44,3 bilhões, perderam R$ 23,9 bi. Empresas de varejo e serviços andam preocupadas com os efeitos nas próprias atividades, uma vez que há pedaços do orçamento doméstico migrando do consumo para as apostas. Nesta semana, o presidente da Febraban, Isaac Sidney, defendeu que o governo antecipe a proibição do uso de cartões de crédito no pagamento de apostas esportivas. A regulamentação da medida, elaborada pelo Ministério da Fazenda, entra em vigor em janeiro de 2025. O dirigente está preocupado com quanto o volume de apostas poderá comprometer a renda das famílias, impactar o endividamento, elevar a inadimplência e, consequentemente, as taxas de juros.

Autorizar e ordenar o mercado de apostas é legítimo; tributá-lo é necessário. Correto é se preparar para o risco de compulsão. E perigoso permitir que jovens e adultos sem perspectiva façam da aposta trabalho, fonte de renda e inspiração político-eleitoral.

 

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