Folha de S. Paulo
O risco maior na América Latina é a tirania
da maioria, não da minoria
O debate sobre o modelo institucional nos EUA tem sido feito em chave negativa, como discuti aqui na coluna. Para Levitsky e Ziblatt, o país está sob tirania da minoria. Um conjunto de instituições contramajoritárias não só supostamente travam a mudança institucional mas também garantem a ascensão de populistas autoritários de direita: colégio eleitoral; Suprema Corte vitalícia com robusto controle de constitucionalidade; Senado e Câmara com forte malapportionment (distorção de representação); regras de obstrução no Senado; e Constituição com fortes limitações ao emendamento.
Curiosamente, o que está sob ataque são
instituições contramajoritárias. Para o eleitor latino americano e brasileiro
isto deveria causar perplexidade. Afinal, grave abuso de poder tem ocorrido na
região em contextos de tirania da maioria, não da minoria. Aliás, para o
eleitor brasileiro o sinal político das críticas muda: se os grotões elegem
Trump, ou se a Suprema Corte é bastião do status quo, aqui temos uma imagem
invertida. Nos EUA historicamente também, durante o período dos direitos civis
—a Corte Warren (1953-1969), o Supremo era atacado como usurpador por setores
que defendiam o status quo.
Sim, líderes populistas que contam com
maiorias legislativas abusam do poder. Chavez é o arquétipo, o Senado
mexicano acaba de aprovar uma emenda Constitucional do
presidente populista de esquerda para a eleição de juízes por uma maioria de
mais de 2/3, com perda do cargo dos atuais magistrados.
Mas na Colômbia, foi uma Suprema Corte
independente que barrou a reeleição de Alvaro Uribe (2002-2010), que contava
com amplo apoio legislativo e popular. A corte julgou inconstitucional seu
plano de reeleição para um terceiro mandato. Ao assumir a cadeira presidencial
Uribe havia proposto um referendum para destituir os membros do congresso, e
criar um parlamento unicameral de tamanho reduzido. Atualmente
está no banco dos réus sendo julgado por abuso de poder.
O protagonismo do STF lembra
o colombiano, mas entre nós há outro coprotagonista —o Congresso— que também
foi ponto de veto nas pretensões hegemônicas do presidente. Mas isso não
significa que o STF tenha só virtudes: ele tem cruzado a linha vermelha recorrentemente.
O debate em torno dos limites entre
democracia e constitucionalismo —entre a regra da maioria e proteção de
direitos— é legítimo (o debate sobre "a
dificuldade contramajoritária" é clássico). No entanto, a
crítica ao protagonismo de "juízes
não eleitos" —recorrente no discurso populista,
independente de coloração política— é problemática porque mistura meias
verdades e argumentos descabidos.
Não há escassez de exemplos bizarros que
levam a críticas legítimas. O último deles é a decisão do ministro Flávio Dino,
que numa canetada monocrática determinou ações de combate a incêndios a serem
cumpridas pela Polícia Federal, especificando o uso de fundos para tal, e ao
tempo em que autorizou gastos ao
arrepio do arcabouço fiscal. Como se membro do poder
Legislativo e Executivo fosse.
Um erro anterior de nomeação de ocupante de
cargo no Executivo para o Supremo se soma a outro: o ativismo deflagrado em
resposta à inação e falta de liderança do próprio Executivo.
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