segunda-feira, 23 de setembro de 2024

O que a mídia pensa | Editoriais / Opiniões

Prisão imediata de condenado por júri popular traz avanço

O Globo

Supremo responde ao anseio legítimo da população por Justiça mais ágil, mas ainda há muito a aperfeiçoar

Foi um acerto a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) estipulando que os condenados pelo Tribunal do Júri devem começar a cumprir a pena logo após a condenação, e não mais depois de julgados todos os recursos judiciais a que têm direito. A decisão tem repercussão geral e terá de ser cumprida em todo o país.

O entendimento da Corte é um passo contra a impunidade e compensa, em certa medida, o recuo dado pelo STF ao revogar a prisão depois de confirmada a sentença em segunda instância. A execução da pena a partir da sentença do segundo grau valia até fevereiro de 2009, quando foi suspensa. Voltou a valer em fevereiro de 2016, depois foi novamente suspensa em novembro de 2019, em julgamentos contaminados pela disputa de narrativas em torno da Operação Lava-Jato.

Agora, a pena pelo menos passa a ser imediata nos crimes contra a vida, como homicídio, feminicídio e latrocínio. No ano passado, 1.463 mulheres foram assassinadas, a maioria vítimas de violência doméstica — um feminicídio a cada seis horas —, e houve ao todo 40.464 mortes violentas, incluindo homicídios, latrocínios e lesões corporais seguidas de morte. Todos esses crimes são julgados por júri popular, grupo de cidadãos sorteados para avaliar as razões da acusação, os argumentos da defesa e proferir o veredito.

Ainda há, é verdade, muito a aperfeiçoar para a Justiça brasileira atender ao anseio da população de que, apenas, os criminosos paguem pelos crimes conforme determina a lei. Mas o STF acabou com a regra segundo a qual, em certos crimes (como aqueles que não envolvem integrantes de facções criminosas), os réus podiam aguardar em liberdade o interminável julgamento de recursos propiciado pelo sem-número de brechas oferecidas pela legislação brasileira. Dessa forma, respondeu aos clamores legítimos pelo fim da banalização da violência, principalmente contra mulheres.

O caso julgado pela Corte que serviu para fixar a nova jurisprudência foi um feminicídio cometido em Santa Catarina. O autor, que assassinou a mulher na frente da filha, esperava em liberdade uma decisão do STF, tomada a partir de recurso do Ministério Público Estadual, endossado pelo Ministério Público Federal. O Superior Tribunal de Justiça (STJ) permitira que ele ficasse fora da cadeia até o esgotamento de todos os inúmeros recursos facultados pela legislação.

Em boa parte desses casos, o Estado deixa de punir criminosos ou porque morrem ou porque há prescrição da pena pedida pela promotoria, segundo afirma Ludmila Ribeiro, pesquisadora do Centro de Estudos de Criminalidade e Segurança Pública da Universidade de Minas Gerais. Um estudo do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) divulgado em 2019, o mais recente sobre o tema, constatou que pouco mais de 30% dos processos encaminhados ao Tribunal do Júri prescreveram.

A celeridade na tramitação dos processos, sempre garantindo o direito de defesa dos acusados, é fundamental para que a Justiça funcione. A decisão tomada pelo STF é bem-vinda por tratar de crimes graves contra a vida. Continua na agenda do país, porém, a necessidade de mudanças que tornem a Justiça mais ágil em todas as instâncias. A lentidão contribui para a impunidade e estimula o crime. Com a decisão, o STF atenua a ideia de que o Judiciário não dá respostas à altura da gravidade dos crimes cometidos no país.

Combate eficaz a fome e desnutrição depende de crescimento econômico

O Globo

Aliança promovida por Lula no G20 teria a ganhar com maior integração do Brasil à economia global

É lamentável que, apesar de todos os avanços tecnológicos e do aumento na produtividade, a fome ainda persista no mundo. A Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO) estima que 30% da população mundial enfrenta, em algum nível, insegurança alimentar (19% moderada e 11% severa). Mesmo que a metodologia associada a esses cálculos possa ser criticada, a realidade revelada por eles é preocupante.

Há, de acordo com os dados da FAO, uma relação nítida entre o estágio de desenvolvimento e a gravidade da fome e da desnutrição. Na África, 61% da população sofre algum tipo de insegurança alimentar — 24%, fome e subnutrição. Na América Latina e Caribe, 38% e 13%, respectivamente. Na Ásia, 24% e 10%. Na América do Norte e na Europa, bloco de países mais desenvolvidos, 8% e 1%.

E a realidade é ainda mais perversa: o preço dos alimentos perecíveis, como frutas e proteínas animais, é mais alto nas regiões emergentes da Ásia e da África, como constatou estudo do Insper noticiado pelo GLOBO. Uma explicação está na falta de infraestrutura frigorífica para armazená-los ou distribuí-los. Com isso, a comida acaba indo para o lixo. Em 2022, o desperdício de alimentos no mundo equivalia a 1 bilhão de refeições diárias, segundo Marcelo Souza, presidente do Instituto Nacional de Economia Circular.

De acordo com dados do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente, foram jogados no lixo alimentos que ocuparam grandes áreas de terra e custaram US$ 1 trilhão para ser produzidos. De todo o desperdício, 60% foram causados nas residências, 25% no setor de serviços e 15% no comércio varejista. “Seguimos com a discussão sobre a redução da temperatura do planeta, mas o desperdício representa cinco vezes mais emissões de gases que as do setor de aviação”, afirma Souza.

Na presidência temporária do G20, o Brasil tomou a iniciativa de lançar a Aliança Global contra a Fome e a Pobreza, defendendo desenvolvimento sustentável com justiça social. Certamente esse será um tema de destaque no discurso do presidente Luiz Inácio Lula da Silva na Assembleia Geral da ONU.

Não haverá como alimentar a população sem produzir comida — e o agronegócio brasileiro terá papel fundamental nessa missão. O país exporta 40% do que produz, está em terceiro lugar no ranking de exportadores de alimentos e em quarto na produção agrícola global. Pelos cálculos de Rodrigo Capella, diretor da Ação Estratégica, agência voltada ao agronegócio, o Brasil poderá ajudar a alimentar o planeta ainda que a população humana chegue a 10 bilhões de habitantes em 2050. Por isso seria imenso o benefício, para todo o planeta, de maior integração do Brasil à economia global.

Os programas de combate à desnutrição, que deverão ser promovidos pela aliança lançada por Lula, não podem esperar que os países adotem as políticas adequadas para o crescimento econômico. Mas só haverá uma vitória decisiva contra a fome com crescimento econômico estável e duradouro. Lula não deveria se esquecer disso.

Reforma judicial do México ameaça democracia e economia

Valor Econômico

Além das graves consequências políticas que deve acarretar, a reforma pode tirar do México o status da rota da reorganização das cadeias produtivas

O México decidiu mergulhar em território ainda desconhecido por uma grande democracia ao promulgar uma polêmica reforma judicial que dá à população o poder de votar para escolher juízes locais, regionais, eleitorais e até da Suprema Corte. Vendida como um exemplo de participação popular por Andrés Manuel López Obrador, a arriscada experiência, na verdade, ameaça a independência do sistema legal e o regime de separação de poderes, eleva a insegurança jurídica e pode afastar investimentos necessários ao desenvolvimento do país.

O projeto dividiu os mexicanos, provocou uma grande greve de servidores do Judiciário e levou manifestantes a invadirem o plenário do Senado em protestos em apoio à oposição. Nada disso foi suficiente para barrar as intenções de López Obrador, que aproveitou seu derradeiro mês de mandato para valer-se da supermaioria obtida por seu partido, o Movimento de Regeneração Nacional (Morena), na última eleição para o Congresso, para emendar a Constituição mexicana, uma manobra referendada por sua aliada e sucessora no cargo, Claudia Sheinbaum, que toma posse em 1 de outubro.

Com a reforma, cerca de 7 mil magistrados serão eleitos pelos mexicanos em duas fases, uma no próximo ano e outra em 2027. A Suprema Corte terá sua composição reduzida de 11 para nove juízes - todos eleitos pelas urnas já em 2025 - com mandatos menores e exigência de apenas cinco anos de experiência legal para ocupar o posto. Todo o novo sistema será supervisionado por uma comissão disciplinar, ainda a ser estabelecida, que terá amplos poderes para punir membros de todas as instâncias.

A magnitude da eleição será o primeiro dos muitos desafios. Só na Cidade do México, estimam especialistas, a população terá de votar para juízes de 150 cargos, inclusive da Suprema Corte. A lista completa de candidatos deverá ultrapassar os mil nomes, a maioria deles desconhecida de grande parte dos mexicanos, o que prejudica a capacidade de os eleitores fazem escolhas minimamente informadas. Preencher a cédula poderá levar até 45 minutos, uma demora que resultará em baixo comparecimento, comprometendo o resultado do pleito.

Outro problema apontado é a lisura do processo em um país marcado por denúncias de corrupção e pela violência. Embora a reforma proíba uso de dinheiro público e privado nas campanhas, são conhecidas as dificuldades dos órgãos eleitorais de rastrear financiamento indevido. Com o domínio do narcotráfico sobre vastas áreas do território, os cidadãos podem ser intimidados a eleger juízes alinhados a interesses escusos, sem independência necessária para exercer a função, especialmente em regiões menos populosas. Também não há impedimento para que pessoas públicas - como empresários - endossem candidatos que depois de eleitos poderão julgar casos envolvendo aqueles que os apoiaram.

A rapidez de implementação também levanta suspeitas sobre o real objetivo da reforma. Por controlar o Congresso e a Presidência, o Morena deve dominar as listas de candidatos e ser amplamente favorecido nas eleições judiciais, abrindo caminho para que o partido estabeleça uma maioria na Suprema Corte - criticada por López Obrador por impor limites a projetos em seu mandato. O aparelhamento político do Judiciário, visto à esquerda e à direita, da Venezuela à Hungria, seria um sério golpe contra o sistema de freios e contrapesos fortalecido após os anos 1990 no México e que é marca de democracias estáveis.

Desde que ficou claro que López Obrador seguiria com a reforma, o peso mexicano deixou de ser uma das moedas de melhor desempenho em relação ao dólar no ano e recuou cerca de 14%. Investidores temem que o país volte aos tempos em que era dominado por uma única força política, o Partido Revolucionário Institucional, e de privilégios a empresas estatais, o que seria um forte retrocesso para um ambiente de negócios que avançou nas últimas décadas graças à maior integração com os EUA e o Canadá. A Câmara Americana de Comércio e o embaixador dos EUA no México, Ken Salazar, fizeram alertas de que o Estado de Direito estaria sob risco com as mudanças.

Embora haja eleições para juízes em outros países no mundo, inclusive nos EUA, elas são geralmente limitadas a instâncias inferiores, o que dá proporção inédita à reforma mexicana. O sistema judiciário do país, apontado por López Obrador como corrupto e defensor das elites, é passível de críticas, mas o projeto do governo mira no alvo errado, na avaliação da Human Rights Watch. São as promotorias, responsáveis pela apresentação e apuração de denúncias em todo o país, que deveriam ser primeiro aprimoradas.

Apesar da popularidade de López Obrador e sua influência no Congresso mesmo após deixar o poder, caberá a Sheinbaum tomar um rumo diferente se não quiser que seu mandato seja marcado por uma batalha sobre a independência da Justiça. Além das graves consequências políticas que deve acarretar, a reforma pode tirar do México o status da rota da reorganização das cadeias produtivas decorrente da pandemia e das tensões geopolíticas globais. Será mais um desafio econômico para a nova presidente, que já terá de lidar com um grande déficit fiscal deixado por seu mentor e antecessor.

Brasil precisa intensificar controle ambiental

Folha de S. Paulo

Regra da UE que veta compra de produtos com origem em desmatamento faz lembrar que proteger a natureza é dever do Estado

Na sexta (20), a Polícia Federal lançou operação para deter acusados de incendiar e grilar milhares de hectares no Pantanal. Um dia antes, agentes buscavam criminosos que extraíam madeira ilegal no Pará. No dia 10, outra ação havia atacado a exploração ilegal de ouro em Mato Grosso.

O incentivo a tais crimes ambientais obviamente diminuiria caso fosse mais difícil negociar os frutos da atividade destrutiva.

Para tanto, são necessários métodos eficientes de rastrear a produção e o comércio de madeira, ouro, outros produtos do extrativismo e grãos. Esse rastreamento exige o auxílio de um cadastro que reflita com exatidão o estado e a utilização de terras rurais. O Brasil conta com leis para levar a cabo tais providências, mas elas ainda são pouco efetivas.

Uma legislação da União Europeia pretende forçar países que comercializam com os da entidade a adotar medidas de proteção ambiental justamente por meio da exigência de rastreamento da cadeia produtiva. A partir de 2025, entra em vigor o Regulamento para Produtos Livres de Desmatamento da UE, aprovado no ano passado.

Negociantes de nações do bloco serão obrigados a se certificar de que não estão importando ou revendendo mercadoria que, de algum modo, teve origem em área desmatada depois de 2020, seja legal ou ilegalmente.

Por enquanto, os produtos sob vigilância são bovinos, cacau, café, dendê, soja, borracha, madeira e alguns de seus derivados. A lista será revisada regularmente.

A lei europeia apresenta problemas e pode elevar custos e desconfiança quanto às mercadorias brasileiras. O governo Luiz Inácio Lula da Silva (PTsolicitou à UE que adie a norma —entretanto vale-se dela para lembrar à bancada ruralista no Congresso que o uso destrutivo do meio ambiente pode causar mais restrições aos seus negócios.

Ainda que o diploma seja controverso, não há como negar que o Brasil precisa reforçar com urgência seu sistema de certificação. O dano ecológico causa muito mais prejuízo do que importações eventualmente barradas.

O registro do Cadastro Ambiental Rural começa a progredir, mas é uma declaração dos proprietários sobre a situação de suas terras, por vezes meramente protocolar. São necessários análise, validação e acompanhamento.

O rastreamento de produtos do extrativismo ainda é fraudado de modo maciço, embora tenham ocorrido avanços em 2023, como no caso do ouro.

Outras punições e prevenções são necessárias: controle do financiamento bancário rural, confisco de terras e inabilitação de agentes financeiros e empresas que facilitam extração e comércio ilegais de minérios e madeira.

Eventuais artimanhas protecionistas da UE não são a questão central. O objetivo de certificações, rastreamentos e punições é preservar o meio ambiente e estrangular o crime, que são tão somente obrigações do Estado.

PIB movido a consumo leva a queda do saldo comercial

Folha de S. Paulo

No 2º trimestre, demanda subiu 4,7%, mas PIB não avançou mais de 3,3%; a diferença foi coberta com alta das importações

Enquanto esteve afastado do poder, entre 2016 e 2022, o PT não aproveitou a oportunidade para refletir sobre seus erros na gestão da economia. Seus dirigentes se recusaram a reconhecer que a derrocada do governo Dilma Rousseff teve raiz na crise que já se avizinhava antes de sua reeleição.

A profunda recessão de 2014-16 foi o resultado da crença de que o Estado deve ser a força motriz da atividade por meio da expansão contínua dos gastos públicos.

Essa foi em essência a política implantada a partir de 2006, quando Dilma, ainda na Casa Civil, torpedeou a proposta do então ministro da Fazenda, Antonio Palocci, de conter a ampliação de despesas permanentes.

Na miragem do moto contínuo, investimentos dirigidos politicamente também deveriam impulsionar o Produto Interno Bruto, mas deixaram uma terra arrasada de má alocação e corrupção.

Quanto à política monetária, restava apenas conter pressões inflacionárias por meio de juros altos, algo por certo tempo tolerável para Luiz Inácio Lula da Silva —mas não para Dilma, que interveio no BC em sua gestão e forçou um experimento monetário irresponsável, de triste memória.

O resultado foi um aquecimento insustentável do consumo das famílias, que não se fazia acompanhar por alta da oferta de bens e serviços na mesma inflação. As consequências incluíram, além de pressões inflacionárias, a erosão dos saldos comerciais do país.

No período, a diferença entre exportações e importações passou de um superávit de US$ 45,1 bilhões em 2006 para déficit de US$ 9,9 bilhões em 2014. De modo análogo, as contas do Tesouro Nacional, no cálculo que não considera o pagamento de juros, saíram do azul para o vermelho.

É o que se ensaia agora novamente. O governo Lula, antes mesmo de começar, impôs gastos adicionais de R$ 150 bilhões ao ano —e não demonstra nenhuma disposição de rever o expansionismo orçamentário.

crescimento econômico movido à despesa pública por ora se sustenta, mas já começa a dar sinais de perda de tração. No segundo trimestre, a demanda interna subiu 4,7% ante o mesmo período do ano passado, mas o PIB não avançou mais de 3,3%. A diferença "vazou", como se diz no jargão, para as importações, que se expandiram 14,8%, muito acima das exportações (4,5%).

O modelo petista já levou a novo ciclo de alta dos juros para conter a inflação. O saldo comercial ainda é vigoroso após o recorde de US$ 98,9 bilhões do ano passado, mas tenderá a cair se não houver mudança de rumo.

Descobriram que as ‘bets’ são um problema

O Estado de S. Paulo

De uma hora para outra, autoridades no governo e no Congresso demonstram preocupação com danos causados pelos sites de apostas, olimpicamente ignorados nos debates parlamentares

O governo e o Congresso parecem ter finalmente acordado para o imenso risco à saúde pública e à vida financeira dos brasileiros representado pela proliferação dos sites de apostas, conhecidos como “bets”. O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, por exemplo, qualificou de “pandemia” a “dependência psicológica” que as “bets” criam nos apostadores. Já o senador Omar Aziz (PSD-AM) pediu à Procuradoria-Geral da República que solicite ao Supremo Tribunal Federal a suspensão das “bets” até que esse mercado esteja totalmente regulamentado, porque segundo ele esses sites têm levado famílias “à ruína financeira, ao endividamento e, em muitos casos, ao suicídio, com alarmantes índices de desespero e falência pessoal”.

É reconfortante saber que nossas autoridades demonstram ter conhecimento dos problemas relacionados às tais “bets”, mas espanta que essa súbita tomada de consciência tenha se dado somente depois que os referidos sites foram legalizados. Como se sabe, o debate parlamentar que resultou na legislação, ocasião em que esse tema deveria ter sido devidamente e amplamente discutido, praticamente ignorou a opinião de especialistas na área de saúde mental – que são unânimes em apontar os danos associados às apostas.

Aparentemente, contudo, ninguém estava muito interessado nisso quando o assunto ganhou a pauta legislativa. O que importava, como se constata, era somente dar um verniz legal a uma realidade acachapante, em que as “bets”, a despeito de serem clandestinas, se tornaram praticamente onipresentes na vida dos brasileiros, seja por meio das apostas em si, seja porque patrocinam todos os clubes de futebol do País e aparecem em propagandas na TV de manhã, de tarde e de noite, 24 horas por dia, sete dias por semana.

Ninguém parecia muito preocupado com a hipótese de que as “bets” fossem usadas, por exemplo, para lavar dinheiro do crime organizado. Ao contrário: no Congresso, houve quem aproveitasse a onda das “bets” para propor a legalização até do jogo do bicho, outra notória lavanderia das máfias.

Já o Executivo, claro, salivava ao fazer as contas de quanto poderia arrecadar em impostos com as apostas. O governo obviamente fechou os olhos para os efeitos deletérios das “bets”, pois era um tema inconveniente para quem vive da mão para a boca e precisa desesperadamente de receita para cumprir a meta fiscal.

Agora, percebendo que ficou impossível ignorar a perspectiva de uma “pandemia” de ludopatia, nas palavras do ministro da Fazenda, as doutas autoridades resolveram endurecer o discurso contra as “bets”, e então criaram um novo problema: a lei que liberou os sites de apostas previa que as empresas interessadas tinham até o fim do ano para se adequar às exigências, mas agora, por conta do súbito endurecimento, esse prazo foi encurtado para outubro. Ou seja, temos aí mais um caso de insegurança jurídica – que poderia ser ainda pior se a proposta do senador Aziz, de suspender imediatamente os sites, fosse acatada.

Trocando em miúdos, o que nasceu torto não tinha mesmo como se endireitar. Durante muito tempo, os sites de apostas funcionaram no Brasil como se lei não existisse, contando com a tradicional anomia local. Deu certo: as “bets” se tornaram um fato consumado, restando às autoridades tirarem proveito, cada uma à sua maneira. Agora, fingem surpresa e afetam preocupação. A senadora Soraya Thronicke (Podemos-MS), por exemplo, protocolou um pedido de CPI das “bets” ilegais, diante de evidências de que sites de apostas estão lavando dinheiro. Para a parlamentar, a CPI tem de investigar, ora vejam, “a descoberta de valores exorbitantes movimentados por essas plataformas, que poderiam estar sendo utilizadas para mascarar atividades ilícitas”. A sra. Thronicke, convém lembrar, foi uma das que votaram a favor da regulação das “bets”.

Este jornal reitera sua oposição à liberação das “bets”, bem como dos demais jogos de azar. Sendo liberadas, que as bets sofram as mais duras restrições, seja em publicidade, seja na proteção da saúde dos apostadores. E que haja a mais firme fiscalização, porque quem se habituou a atuar fora da lei precisa se convencer de que esta é para valer.

Convite à corrupção

O Estado de S. Paulo

Cada vez que se abre uma fresta da caixa-preta das emendas parlamentares, transbordam indícios de ilicitude. Mas corrupção criminal é só um aspecto da corrosão sistêmica em curso

A Procuradoria-Geral da República (PGR) denunciou ao Supremo Tribunal Federal (STF) três deputados do PL – Josimar Maranhãozinho (MA), Bosco Costa (SE) e Pastor Gil (MA) – por desvio de emendas parlamentares. O trio é acusado de agir para desviar uma parcela de R$ 1,6 milhão de repasses ao município maranhense de São José de Ribamar. A investigação partiu de uma denúncia de extorsão de 2020 do então prefeito do município, Eudes Sampaio. Segundo a PGR, os deputados cobrariam uma quantia de 25% dos recursos transferidos ao município por meio de emendas.

O processo corre sob sigilo e, por óbvio, é preciso esperar a sua conclusão. Mas não é o primeiro e tudo indica que não será o último. O fato é que as emendas parlamentares, tal como foram reconfiguradas, ou melhor, desfiguradas, são um campo fértil à improbidade e à corrupção.

Considere-se o caso das “transferências especiais”, normatizadas em 2019. Por essa modalidade, apelidada “emenda Pix”, os parlamentares doam recursos da União diretamente aos Estados e municípios, sem a necessidade de indicar a sua destinação ou celebrar convênio. Uma vez transferido, o dinheiro passa a pertencer ao ente federado, que pode gastá-lo praticamente como bem entender e não está obrigado a prestar contas ao governo federal. Como disse a Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo em uma ação protocolada no STF que questiona a constitucionalidade dessas emendas, elas criam um verdadeiro “apagão fiscalizador contábil no Estado brasileiro”.

Não surpreende que as emendas Pix tenham se tornado o recurso mais usado por parlamentares para mandar dinheiro para seus redutos. No ano passado, dos R$ 25,6 bilhões liberados pelo governo federal para esse fim, R$ 6,4 bilhões foram direcionados por meio das emendas Pix.

No ano eleitoral de 2022, elas foram usadas, por exemplo, para bancar shows sertanejos em cidades sem infraestrutura. Entre 2020 e 2023, a cidade que mais recebeu esses recursos, Carapicuíba (SP), pagou mais caro por asfalto e reformas de praça, enquanto obras em escolas ficavam paralisadas ou atrasadas. No ano passado, o Tribunal de Contas do Estado de São Paulo alertou que 80% dos municípios não têm prestado contas de como essas verbas foram executadas.

Uma auditoria da Controladoria-Geral da União sobre os 10 municípios que mais receberam emendas conforme a proporção da população, entre 2020 e 2023, mostrou que todos são pequenos, sem órgãos de fiscalização adequados e que boa parte dos recursos foi destinada a obras que nem sequer começaram e não servem às principais demandas municipais. O Estadão apurou que, das 30 cidades que lideram o ranking de emendas per capita naquele período, 80% têm zero transparência sobre sua execução.

A cada vez que a imprensa ou órgãos de fiscalização conseguem abrir uma fresta da caixa-preta das emendas, os indícios de irregularidades transbordam. Só o deputado Josimar Maranhãozinho é alvo de mais duas investigações envolvendo malversação de emendas. Uma delas pode ter desviado R$ 15 milhões de verbas destinadas à Saúde no Maranhão.

A corrupção no sentido estritamente criminal é só o aspecto mais ultrajante da corrupção sistêmica em curso através das emendas. Mesmo quando não há desvio de recursos públicos para enriquecimento privado, as emendas corrompem as políticas públicas, porque são repassadas sem critérios técnicos e conformes aos objetivos da União e às necessidades de Estados e municípios; corrompem a governabilidade, porque podem ser utilizadas pelos parlamentares para satisfazer seus interesses paroquiais negligenciando a disciplina partidária; corrompem a competição democrática, porque são utilizadas para abastecer redutos eleitorais dos congressistas como um Fundo Eleitoral complementar.

Para dar só uma ideia das consequências dessa pulverização do Orçamento, dos R$ 194 bilhões em emendas ao Orçamento feitas desde 2019, os congressistas destinaram apenas 0,02% para ações de combate a incêndios. É emblemático: enquanto o “feirão de emendas” corre solto em Brasília, o fogo corre solto no Brasil.

Mais um recorde no campo

O Estado de S. Paulo

Conab prevê mais uma safra recorde e aumento da produtividade se clima cooperar com o agronegócio

A Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) prevê que a safra 2024/2025 deve atingir 326,9 milhões de toneladas, um crescimento de 8% na comparação com a temporada anterior. Se confirmada, será a maior safra da história. O dado inclui a estimativa para soja, milho, feijão, arroz e algodão, itens que representam 90% da produção nacional de grãos.

O levantamento, feito em parceria com o Banco do Brasil, considerou dados como os levantamentos de área, produção e produtividade, além de previsões de clima, preço e dados de mercado para todas as culturas e todos os Estados. Segundo a Conab, será uma safra robusta, capaz de atender à demanda do mercado interno e às exportações.

O aumento da produção se dará em razão de uma expectativa de aumento do volume colhido e de uma ligeira recuperação na área plantada com arroz e feijão. A área plantada deve subir 2,11%, para 81,4 milhões de toneladas, enquanto a produtividade deve aumentar 5,94%, para 4,016 toneladas por hectare.

Trata-se de uma estimativa e tanto para um setor que sofreu com o excesso de chuvas no Sul do País, entre abril e maio, e que enfrenta agora temperaturas elevadas e uma das maiores estiagens da história. Os números, por óbvio, dependem de diversos fatores, e o clima é o principal deles.

Nesta primeira etapa, a Conab não realizou visitas em campo, previstas para ocorrer apenas em outubro. A exemplo do ano passado, a safra pode atrasar em razão da irregularidade das chuvas, e a queda na demanda por fertilizantes já é um indício de que os agricultores vão aguardar mais tempo para iniciar o plantio.

A exuberância do campo impressiona, mas não surpreende. No caso da soja, a produção deve aumentar 12,82%, para 166,28 milhões de toneladas. A área plantada deve crescer 3%, e a produtividade deve aumentar 9,6% ante a safra anterior, de 3,2 toneladas para 3,5 toneladas por hectare – apesar da projeção de queda dos preços e da rentabilidade do produtor.

Já a produção de arroz deve crescer 14,67%, com 12,142 milhões de toneladas. Tanto a área plantada quanto a produtividade devem aumentar, respectivamente, 11% e 3,3%. No caso do grão, os efeitos do La Niña, se moderados, tendem a ser favoráveis em Santa Catarina e no Rio Grande do Sul, a ponto de a Conab prever aumento de exportações e balança comercial superavitária.

O desempenho do agronegócio é sempre um alento a desafiar o pessimismo com a economia. Mas, apesar da participação relevante e crescente no Produto Interno Bruto (PIB), de cerca de 24%, a eficiência do agro não é suficiente para alavancar a produtividade do País como um todo.

Em tempos de desconfianças sobre a qualidade e a capacidade de o País crescer sem pressionar a inflação, o campo é prova de que não é preciso reinventar a roda ou apelar a leilões públicos e preços subsidiados, como o governo aventou durante as enchentes no RS.

Basta manter políticas setoriais consistentes, investimentos em tecnologia, pesquisa e desenvolvimento e um nível de competitividade suficiente para disputar mercados externos – um exemplo para a indústria e serviços.

Incêndios ameaçam nossos patrimônios

Correio Braziliense

No Distrito Federal, no início deste mês, o fogo queimou quase a metade da Floresta Nacional de Brasília (Flona)

O fogo não dá trégua, as labaredas se alastram por grande parte do território brasileiro, e, junto à destruição já causada a tesouros naturais como Amazônia, Pantanal e Cerrado, há ameaças a joias do patrimônio nacional. Neste início de primavera, com expectativa para as chuvas, ainda estão quentes na memória as cenas dos incêndios que consumiram quilômetros de áreas verdes, chegando a colocar 60% do território nacional sob risco de queimada.

Nesta temporada, a vegetação seca vira combustível certo. E as unidades de conservação e extensas matas no entorno das capitais e cidades de maior porte se tornam presa fácil do fogo. As chamas consumiram centenas de hectares da vegetação da Reserva Particular do Patrimônio Natural (RPPN) do Caraça, em Minas Gerais, com severos danos não só à vegetação, que abriga espécies em risco, como à rica fauna local, na qual se destaca o lobo-guará. A situação no complexo histórico, turístico, paisagístico e religioso do século 18, atrativo para gente do mundo inteiro, alarmou hóspedes e criou dificuldades no acesso ao santuário. 

No Distrito Federal, no início deste mês, o fogo queimou quase a metade da Floresta Nacional de Brasília (Flona). A área de 5.640 hectares foi criada para funcionar como um cinturão verde para garantir a preservação de mananciais de água e do Parque Nacional de Brasília e é um local de turismo e prática de exercícios para a população. No Pantanal, foram verificados prejuízos de bilhões para a economia, incluindo a pecuária de corte, o setor sucroenergético e a silvicultura. Os impactos no agro se somam aos danos à infraestrutura das propriedades.

Durante a longa estiagem, o combate ao crescimento contínuo das queimadas que colocam em risco grande parte do país exige controle, pulso firme, determinação e medidas para impedir mais destruição e que não se repitam de forma tão avassaladora na próxima estação seca. A ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, denuncia a existência de terrorismo climático, com pessoas se aproveitando das mudanças climáticas para agravar o problema. Falta agora dar os nomes.

Com as chamas consumindo há meses os biomas, o governo federal garantiu a liberação, via medida provisória, de um crédito extraordinário de R$ 514 milhões. Enquanto isso, o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) reforça as medidas de contenção com mais R$ 400 milhões. É de se esperar que, juntamente com os recursos, haja uma campanha de conscientização para se evitarem novas agressões ao meio ambiente. 

Em Santa Luzia, na Região Metropolitana de Belo Horizonte, as monjas do Mosteiro de Macaúbas, construção de 310 anos, redobraram as preces para afastar a tenebrosa proximidade do fogo. E passam das palavras à obra. As religiosas mantêm sempre preservado o aceiro em volta da construção de 11,5 mil metros quadrados. Que as irmãs de Macaúbas sirvam de exemplo na defesa do patrimônio natural e histórico: sempre de olho e atentas para proteger as matas do fogo cruzado. Na primavera que começou ontem, o Brasil está, sem exagero, entre a cruz e a fogueira. Haja prece!

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