O Globo
Ricos não dão um quinhão por mais justiça
social e tributária. É assim desde que o Brasil é Brasil
No pronunciamento aos queridos brasileiros e
às queridas brasileiras, o ministro da Fazenda usou postura e palavreado
presidenciais em busca de algum apoio popular para medidas que, embora
desidratem direitos sociais, não satisfazem os bambambãs das finanças. Os R$ 70
bilhões que o governo promete economizar num par de anos, à custa de mudanças
no abono salarial, no reajuste do salário mínimo, na limitação de despesas e
até na previdência dos militares, vão para o mercado na forma de juros num
piscar de olhos. Ainda assim, o dólar avança impávido ladeira acima. Segue o
baile.
As contas públicas brasileiras são disfuncionais porque o país tem muita gente pobre demandando política pública e grupos privilegiados que, numericamente em desvantagem, não dão um quinhão por mais justiça social e tributária. É assim desde que o Brasil é Brasil. Abusam da capacidade de organização e pressão política para manter benesses. Farinha muita, meu pirão primeiro; farinha pouca, também. E tome desoneração.
É verdade que a composição nada diversa do
Congresso Nacional tampouco impulsiona uma agenda que priorize os necessitados.
É praticamente inviável ser progressista num parlamento entre conservador e
reacionário. Na reforma tributária, ficou nítido que o conjunto de itens
beneficiados com isenções ou tarifas reduzidas atendeu mais aos interesses de
quem produz que os de quem consome. Toda vez que sofre um revés, a extrema
direita dá um jeito de desenterrar pautas para subtrair direitos das mulheres.
Misoginia viraliza.
Anteontem, foi a Comissão de Constituição e
Justiça (CCJ) da Câmara dos
Deputados que deu sinal verde à tramitação de uma mudança na
Carta para garantir a inviolabilidade do direito à vida desde a concepção. Na
prática, significa retroceder à primeira metade do século passado, antes de a
legislação permitir o aborto em casos de estupro e risco de vida à gestante —
mais tarde, em 2012, o Supremo Tribunal Federal estendeu a interrupção para
fetos anencéfalos.
Em cadeia nacional, Fernando
Haddad elencou bons números da economia (PIB crescente,
desemprego em queda), redesenho de antigos programas sociais, lançamento de
novos, como Desenrola (pagamento de dívidas), Pé de Meia (bolsas a estudantes
do ensino médio) e Acredita (crédito a pequenos negócios). Incorporou
solenemente os verbos empreender e prosperar ao glossário oficial. Qualquer
semelhança com a gramática coach-religiosa que seduz a periferia não será
coincidência.
O titular da Fazenda atravessou novembro
toureando o presidente da República e colegas de ministério para organizar o
conjunto de medidas de ajuste fiscal apresentado ontem. O abono salarial pago a
trabalhadores formais que ganham até dois mínimos será, aos poucos, reduzido
para a faixa que recebe até um salário e meio. A fórmula de reajuste real do
piso, promessa de campanha de Lula,
trocará o PIB pelo limite do arcabouço fiscal. É melhor que a política de
reajuste zero de Jair
Bolsonaro, mas pior que a instituída pelo atual presidente em
mandatos anteriores. Menos é melhor que nada.
Num aceno à classe média, o governo planeja
isentar de imposto de renda salários de até R$ 5 mil. Para compensar, tributará
mais os rendimentos acima de R$ 50 mil, com regras a ser conhecidas. Os
supersalários no setor público serão contidos, bem como aberrações das Forças
Armadas, como a pensão por morte ficta (na verdade, expulsão) e a inexistência
de idade mínima para a reserva remunerada.
Quando se dirigiu ao país, Haddad disse que
criação, ampliação ou prorrogação de benefícios tributários serão proibidos,
quando houver déficit primário nas contas públicas. Foi pelo ralo uma
oportunidade de recompor, em tempos de escassez generalizada, benefícios,
desonerações e subsídios ineficientes e sem contrapartidas. Seria hora de todos
darem contribuições ao esforço fiscal. Mas alguns não são todo mundo, nos
ensinaram matriarcas em broncas de outros carnavais.
Aos amigos do poder, tudo; aos desvalidos, a
dureza da lei. Para restringir acesso ao Benefício de Prestação Continuada
(BPC) de um mínimo a idosos sem aposentadoria e pessoas com deficiência em
vulnerabilidade, a equipe econômica, com aval de Lula, teve a coragem de propor
que sejam computadas rendas de cônjuge ou companheiro não coabitantes e de
irmãos, filhos e enteados coabitantes. É medida vil, que aniquila a
solidariedade do Estado e solapa a autonomia financeira dos beneficiários. Pior
que isso, torna 100% dependentes dos parentes os incapacitados para trabalhar.
As famílias que lutem. Estamos bem.
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