Valor Econômico
Há indicativos de que o golpe de Estado é continuo, de autoria disfarçada. Nesse sentido, as descobertas recentes da Polícia Federal representam um fato histórico inovador que pode tornar real a democracia no Brasil
A notícia da prisão de oficiais do Exército e
de um policial federal mudou as referências de compreensão do atentado
terrorista em Brasília, no dia 13 de novembro. A descoberta de indícios de um
plano para matar o presidente e o vice-presidente da República, eleitos em
2022, Lula e Alckmin, e, também, o ministro Alexandre de Moraes pôs o
homem-bomba num cenário sociologicamente mais abrangente. A divulgação da lista
dos 37 indiciados no processo de apuração da tentativa de golpe de Estado
livrou o terrorista da solidão que lhe imputavam.
Jornalisticamente, a diversificação de
indícios de uma situação política crítica obscureceu a relevância noticiosa da
ação do homem-bomba. Mas revelou o sentido sociológico e explicativo da rede de
ações e relações ocultos no processo do que se tornou o de nossa decadência
política.
Cessaram, na mídia, as cogitações que explicam a suposta solidão do autor do atentado contra o STF. Muito depressa bolsonaristas defenderam-se ao estranhar o correligionário extremista. Negaram a eventual responsabilidade coletiva na instigação difusa a que agisse como agiu, nos lugares em que o fez. Cuspiram-no.
Minha hipótese é a de que o golpe ainda está
pendente. Sem comando, os disseminados executores ainda estão soltos e com
ordens distribuídas, implantadas no subconsciente. Isso é próprio do
comportamento de multidão.
Os interrogatórios divulgados dos
participantes da intentona de 8 de janeiro de 2023 e as revelações dos
indiciamentos de agora sugerem que o golpe é fragmentário. É lento e
distributivo de mandatos e tarefas aos anônimos de um radicalismo exaltado e
manipulado contra inimigos imaginários e de ficção.
Para esses atores, os conspiradores
inventaram uma identidade, “patriotas”, que se apossaram dos símbolos nacionais
e baniram da concepção de pátria o povo brasileiro. Identificaram as
instituições do Estado democrático de direito como alvos de desmoralização e
destruição. Esses atores estão disseminados pelo país inteiro, escorados em
municípios e em instituições locais, focos eventuais de poder paralelo,
golpista e subversivo.
Os autores e patrocinadores não serão
identificados apenas seguindo o dinheiro e procurando os financiadores. O
patrocínio é político e o golpe vem sendo preparado, muito provavelmente, desde
que o regime militar foi encerrado com a eleição de Tancredo Neves, contra o
candidato da ditadora agônica.
A Constituinte de 1988, na infiltração do
artigo 142, cuja ambiguidade sugere a tutela das Forças Armadas sobre as
instituições, animou os golpistas. Mesmo que o STF já tenha reconhecido que
elas não são um poder moderador.
Na lógica do que vem ocorrendo, o que conta é
a dúvida e a incerteza sobre esse artigo da Constituição, sobre a legalidade
das eleições no uso da urna eletrônica, sobre a inocência das vítimas de
estigmatização política, sobre a legitimidade da pluralidade social e política
e da diversificação das doutrinas políticas.
A concentração do fogo golpista no STF e na
definição da multidão como sujeito político são indicativos de que o golpe de
Estado é contínuo, de autoria disfarçada. Nesse sentido, as descobertas
recentes da Polícia Federal representam um fato histórico inovador que pode
tornar real a democracia no Brasil.
A coalizão política de extrema direita,
difusa, baseada na disseminação da suspeição de improbidade e de subversão
contra todos, ficou exposta. A visibilidade lhe é adversa.
O novo direitismo internacional tem aqui como
combatentes os confusos setores médios, sem protagonismo político e histórico.
Os que, de repente, são tratados por figuras simbolicamente relevantes da
estrutura de poder, como coadjuvantes. Uma forma de qualquerismo
subdesenvolvido, em que qualquer um se considera poderoso porque cúmplice de
quem tem funções de poder.
ente que nunca foi ninguém na história do
Brasil colocada na linha de frente para defender a pátria e em nome dela falar
e mandar. Surge a multidão insubmissa, trajando fantasias com os símbolos da
pátria, pensando-se imprescindível, assumindo o encargo de ocupar e
desmoralizar as instituições e o Estado. Uma volta pós-moderna ao cangaço e dos
régulos do poder pessoal.
Os militares envolvidos na conspiração e na
tentativa de golpe de Estado, e os seus acólitos civis, não conseguem
compreender, porque não têm formação para isso, o que é o poder dos opostos. O
avanço das investigações revela que na verdade eles é que são cúmplices dos
manifestantes da Praça dos Três Poderes. Direito e avesso, nas contradições
próprias do processo histórico, invertem-se. Os que pensavam enquadrar os
outros estão enquadrados. O poder se chama Constituição e não Bolsonaro.
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