Valor Econômico
Ficamos por um fio de um novo autoritarismo
porque a democracia ainda é fraca, ou o golpismo foi evitado porque o atual
regime democrático é forte?
A imensa investigação feita pela Polícia
Federal revelou que um projeto de golpe de Estado e de ditadura foi gestado
pelo presidente Bolsonaro e por diversos membros do seu governo. Este fato tem
evidências demais para ser considerado inverídico. A dúvida que tem gerado
muito debate é outra: ficamos por um fio de um novo autoritarismo porque a
democracia ainda é fraca, ou, contrariamente, o golpismo foi evitado porque o
atual regime democrático é forte?
Esse raciocínio dicotômico não capta a
complexidade da política brasileira contemporânea. O Brasil avançou no plano
institucional e na presença de organizações sociais democráticas, de modo que é
bem mais difícil ser golpista bem-sucedido hoje. Mas, ao mesmo tempo, ainda há
riscos democráticos porque um golpe de Estado não aconteceu por milímetros.
Bastava que os comandantes do Exército, Freire Gomes, e da Aeronáutica,
Baptista Junior, tivessem aceitado o plano maluco e autoritário de Bolsonaro
que a anarquia e a instabilidade poderiam ter quebrado o processo democrático.
Se isso seria feito com assassinatos, junta provisória de governo ou prisão de
ministros do STF e de políticos, qual seria a intensidade da reação ao golpe e
por quanto tempo duraria essa situação antidemocrática, nunca saberemos por
completo.
Há aqui um aparente paradoxo, pois parecem ser inconciliáveis os dois argumentos. No entanto, é possível formular o problema de uma forma mais sofisticada e menos maniqueísta. É inegável que 2022 tinha elementos bem diferentes de 1964. As instituições políticas atuais são mais vinculadas à democracia, do mesmo modo que há setores sociais e apoios internacionais que dificultaram o golpismo bolsonarista.
Só que se chegou à beira do abismo. Planos
terroristas foram montados por altos dirigentes públicos, com muita gente na
rua em acampamentos e, por fim, houve uma apoteose tragicômica com a Intentona
de 8 de janeiro, destruidora dos espaços físicos dos três Poderes. Eis um
cenário a que nunca tínhamos chegado tão perto desde o fim do regime militar.
Seria possível retrucar que o golpe não
ocorreu e, enfim, o país aprender com esse episódio. O problema é que há muitas
dúvidas sobre o quanto o Brasil aprendeu com o golpismo bolsonarista. Um mês
atrás, antes das recentes revelações sobre a dimensão avassaladora do plano de
quebra do regime democrático, havia grandes chances de o Congresso Nacional
aprovar uma anistia aos condenados pela Intentona de 8 de janeiro e, por
tabela, acreditava-se também na aprovação de algo que derrubasse a
inelegibilidade de Bolsonaro. As possibilidades de se passar o pano para os
golpistas eram altas, pois os bolsonaristas tinham saído de uma eleição
municipal na qual, segundo a visão deles, eles tinham sido perdoados dos seus
“pecadilhos” cometidos durante os verões passados. Muita gente do Centrão
estava começando a aceitar esse sofisma e até governistas pensavam que seria
impossível segurar essa onda.
Mesmo agora, depois de tantas revelações
escandalosas, há uma tentativa de recontar a história e criar uma “realidade
alternativa” que tem sido espalhada pelas redes sociais e por setores sociais
mais afinados com o bolsonarismo. A resposta do presidente Bolsonaro é
paradigmática desse negacionismo frente à democracia. Ele tem dito que nunca
pensou ou planejou um golpe, e sempre atuou conforme as “quatro linhas” da
Constituição. No entanto, sua resposta sobre o que efetivamente ocorreu revela
claramente o “monstro” que ali residia: Bolsonaro diz que cogitou a instalação
de, apenas, um estado de sítio, o que faria parte das regras do jogo.
Trata-se de uma revelação que demonstra o
quanto a segunda maior liderança do país, alicerçada no partido com maior
bancada na Câmara Federal, ainda não compreendeu o que é a democracia, ou que
então ela tenta apenas justificar seu golpismo de uma forma aceitável para seu
eleitorado. Mas por que Bolsonaro teria de instalar um estado de sítio? O que
naquela situação justificava tal medida? A resposta estava nos planos dos
golpistas: Lula não deveria subir a rampa do Palácio do Planalto. Logo, o que o
ex-presidente justifica como o cumprimento da lei era simplesmente uma forma de
dar um golpe de Estado com feição de legalidade. O regime militar também fez
isso regularmente, inclusive com reformas da Constituição, e nem por isso
deixou de ser o que era efetivamente: uma ditadura.
A combinação de uma democracia mais madura do
que em qualquer época da história brasileira com uma situação em que ainda há
espaços consideráveis para golpismos é o ponto em que estamos. Para avançar
democraticamente e reduzir os riscos autoritários, o caminho é o do
aperfeiçoamento político e institucional do país. Seguindo esta linha de
raciocínio, uma agenda de aprofundamento da democracia e criadora de antídotos
mais eficazes contra o golpismo precisa ser construída.
O ponto de partida desse processo passa pelas
Forças Armadas, que quase repetiram em 2022 sua terrível sina, iniciada com a
Proclamação da República, de praticar golpes de Estado para colocar ou manter
seus aliados no poder. Muitos militares graúdos participaram do tétrico teatro
da preparação golpista. Eles foram insuflados, é verdade, por Bolsonaro - que
não lidera, só libera, como diz a socióloga Angela Alonso -, mas também se
sentiram empoderados e entusiasmados com a possibilidade de repetir 1964. Mal sabiam
que estavam reproduzindo a famosa frase de Marx: da primeira vez, o golpe foi
tragédia; na segunda, apenas uma farsa.
A politização das Forças Armadas ocorrida
durante o governo Bolsonaro não é condizente com a democracia. Uma tarefa
urgentíssima é alinhar a formação dos militares com os preceitos democráticos,
objetivo que as lideranças da redemocratização infelizmente não conseguiram
alcançar. É inadmissível ter altos oficiais criticando o sistema eleitoral,
defendendo golpes contra governantes eleitos e, o pior de tudo, planejando
assassinatos e envenenamentos de autoridades públicas. Inversamente, é
necessário prestigiar e colocar como exemplo os oficiais que resistiram ao
golpismo de Bolsonaro. O general Freire Gomes e o brigadeiro Baptista Junior
devem ser usados como exemplos de conduta para os futuros comandantes, tratados
como heróis de uma instituição tão relevante ao Brasil quando age de forma
legalista.
O Congresso Nacional não participou
ativamente do golpe, por vezes atuou como instituição defensora da sociedade -
como na época da pandemia da covid-19 -, mas, mesmo assim, foi muito leniente
com vários autoritarismos de Bolsonaro. Isso ocorreu porque o ex-presidente
delegou muitos poderes aos congressistas, particularmente à sua elite
parlamentar. As decisões da Câmara se tornaram mais autocráticas na figura de
seu presidente e mais opacas frente à opinião pública. O crescimento do
emendismo orçamentário criou uma máquina clientelista de multiplicar recursos e
votos nas bases locais de modo pouquíssimo transparente.
O resultado líquido desse empoderamento
oligárquico e opaco das lideranças congressuais é o enfraquecimento da crença
na democracia e, concomitantemente, o reforço do discurso antissistema. Para
quem tem medo do autoritarismo de Bolsonaro, uma notícia pior está no quadro
das probabilidades futuras: a ascensão de líderes ainda mais virulentos,
populistas e autocráticos, ao estilo de Pablo Marçal. Para evitar isso, é
fundamental democratizar mais o Congresso Nacional e torná-lo mais permeável e
“accountable” à sociedade.
O sistema de Justiça também precisa aprender
com o longo processo que gestou o bolsonarismo autoritário. Tudo começou nas
ilegalidades e desvios de poder da Operação Lava-Jato, amparada por todo o
Judiciário, é bom que se diga. É bem verdade que o STF e o TSE foram centrais
na defesa recente da democracia. Com acertos e erros, o ministro Alexandre de
Moraes foi a figura-chave para evitar o golpe de Estado e tem sido fundamental
para punir os golpistas. Mas esse modo heterodoxo de funcionar num cenário de
anormalidade democrática não pode vigorar eternamente. O dia seguinte desse
processo precisa, urgentemente, ser construído pelos ministros do Supremo, ao
custo de a sanha populista de extrema direita conquistar mais setores sociais
para praticarem o linchamento institucional que poderá levar à destruição
futura da própria democracia.
Muitas outras tarefas de fortalecimento da
democracia brasileira são fundamentais para completar o processo iniciado com a
redemocratização. Mas não se pode finalizar um debate sobre o autoritarismo
latente no país sem citar o descontrole do crime organizado e das polícias
militares. Atua-se aqui como traças que corroem a base dos direitos dos
cidadãos, matando cotidianamente os mais pobres e protegendo os grandes
senhores do crime. A volta do modelo malufista de segurança pública em São
Paulo, sob o comando do capitão Derrite, é a prova de que há algo mais
profundamente autoritário no Brasil do que os planos dos golpistas elaborados
durante o governo Bolsonaro. Este último foi um fracasso, ao passo que a
“derritização” tem sido bem-sucedida no seu projeto.
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