Valor Econômico
Todas as negociações foram construídas na Presidência de Joe Biden
A diplomacia mundial usa o termo “sherpa”
para designar o principal negociador de cada país nas cúpulas internacionais. A
metáfora é adequada. Os sherpas, povo originário do Himalaia, entre o Tibete e
o Nepal, tornaram-se os guias dos alpinistas que se dispõem a escalar as
montanhas mais altas do mundo, como o Everest.
“Os sherpas [na diplomacia] têm de ajudar os líderes [chefes de Estado] a chegarem à cúpula”, ou seja, ao ponto alto das negociações, em meio a longas e sinuosas trilhas, explicou à coluna o embaixador Maurício Carvalho Lyrio. Ele é o sherpa do Brasil na cúpula do G20, cuja reunião de chefes de Estado ocorre nos dias 18 e 19 no Rio de Janeiro, sob a presidência brasileira.
O embaixador, que também é secretário de
Assuntos Econômicos e Financeiros do Itamaraty, não vê impacto direto da
vitória de Donald Trump nas eleições americanas na reta final da cúpula. Isso
porque todas as negociações foram construídas na Presidência de Joe Biden - que
confirmou presença no evento. Trump, por exemplo, é avesso à agenda do clima,
uma das pautas prioritárias do G20.
O termo “sherpa” foi adotado pela diplomacia
há anos, mas nunca fez tanto sentido em razão da crise climática. Há algumas
semanas, a revista “Nature Geoscience” publicou uma pesquisa da Universidade de
Geociências da China revelando que a montanha mais alta do planeta, o Monte
Everest (8.849 metros) não parou de crescer, e o fenômeno está associado à
erosão de um sistema fluvial e às mudanças climáticas.
Num cenário de catástrofes climáticas -
inundações no Rio Grande do Sul e em Valência, na Espanha - será cada vez mais
difícil aos sherpas chegar ao alto da montanha, ou dos debates, se até o topo
do Everest ficou mais distante.
No G20, uma das prioridades da trilha de
finanças sustentáveis foi o alinhamento e a otimização dos diversos fundos
criados para financiar o combate às mudanças climáticas. “Antes de criar novos
fundos, é importante melhor utilizá-los, alinhá-los, otimizá-los. Foi feito um
trabalho para que eles se tornem mais efetivos como fontes de financiamento”,
afirmou.
Com as guerras em curso no Oriente Médio e na
Ucrânia, o embaixador citou conquistas importantes da presidência brasileira do
G20, como o desbloqueio das questões geopolíticas, que ficaram reservadas a
duas instâncias de debates, a dos chanceleres e a dos chefes de Estado.
Nas cúpulas anteriores, os impasses em torno
dessas pautas emperraram as demais discussões. Sem esse obstáculo, foi possível
avançar nos demais 15 grupos de trabalhos temáticos. Pautas sensíveis como os
conflitos em Gaza e na Ucrãnia serão tratados nas altas instâncias, e constarão
da declaração final da cúpula.
Na avaliação de Lyrio, outra vitória da
presidência brasileira do G20 foi a retomada das discussões econômicas no
âmbito da cúpula, a começar pela declaração dos ministros de finanças sobre
cooperação tributária internacional. O destaque foi o consenso sobre a
necessidade de uma tributação progressiva sobre os super-ricos.
“Foi consensual”, ressaltou o embaixador.
“Consideramos um grande feito do ministro [Fernando] Haddad porque não havia
expectativa de que todos os países-membros se juntariam a essa declaração”,
reforçou. Sem citar os Estados Unidos, principal opositor do tema, Lyrio
reconheceu que houve resistência de muitos países à pauta.
De acordo com o documento, a tributação
progressiva foi considerada uma das principais ferramentas para reduzir as
desigualdades dos países, além de fortalecer a sustentabilidade fiscal e
promover o crescimento sustentável. Falta, contudo, incluir o item na
declaração final dos chefes de Estado. Na sequência, cumprir, ainda, uma longa
trilha até que essa taxação se materialize no mundo real.
“É um longo processo de negociação para
transformar essa declaração em convenções ou tratados que levem a essa
tributação”, observou. Ele acrescentou que esse processo assemelha-se à
tributação das grandes plataformas e das bets nos países que abrigam as sedes
dessas empresas, discussão que teve início em uma cúpula do G20.
Para Lyrio, a marca da presidência brasileira
do G20 é a aliança global contra a fome e a pobreza. “É o que o presidente Lula
tem dito sobre a necessidade de combater todas as formas de desigualdade, e
quando falamos de fome, essa é uma das formas mais gritantes de desigualdades”,
afirmou. Ele ponderou, contudo, que há formas distintas de desigualdade. Na
pauta climática, por exemplo, há países com mais ou menos acesso a recursos
para enfrentar as catástrofes. O Brasil também cobra a reforma de órgãos multilaterais
como as Nações Unidas, fundadas há 80 anos, sem revisão dos espaços de poder.
Em meio a uma conjuntura complexa no cenário
internacional, o embaixador destacou a sensibilidade brasileira em levar para a
cúpula pautas que permitiram uma maior convergência. “São questões menos
contaminadas por impasses geopolíticos, como o combate à fome e à pobreza. Ou
seja, quem pode ser partidário ou dogmático numa hora em que você tem que
enfrentar um mundo com 733 milhões passando fome?”, questionou. Tratam-se, em
suma, de trilhas extensas e sinuosas para os sherpas, com a missão de conduzir
os líderes para a mais pertinente e oportuna declaração final deste G20.
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