Valor Econômico
O Halloween tornou-se aqui um artifício para
saciar da carência de doçura esta sociedade de insuficiências e insatisfações
Já faz alguns anos que, na véspera do Dia de
Todos os Santos, a criançada das redondezas de onde moro, no subúrbio de São
Paulo, logo depois de escurecer, em grupos, muito sorridente e alegre, bate à
porta de casa e quando atendemos somos saudados com o que parece ser mais uma
ameaça do que uma brincadeira: “Gostosuras ou diabruras?”.
A alegria infantil das atitudes contrasta com
a sisudez da frase estrangeira, originária de uma cultura religiosa repressiva
dos tempos puritanos da caça às bruxas nos EUA.
No começo, aqui em casa, resistimos em aderir e participar. Não víamos nenhuma relação com nossa sociedade e nossos costumes. Aquilo era estranho e postiço.
Para minha mulher e eu, não tinha sentido.
Amigos nos sugeriram que havia aqui um equivalente das bruxas americanas, o
saci-pererê. Na verdade o saci é outra coisa. Não é bruxa. Nem feiticeiro. É um
“trickster”, um ser ambíguo. Para muitos é o nosso malandro simbólico. Situa-se
no limite dos lados, desrespeita regras, encarapita-se nos mourões das
porteiras. Separa e une. De certo modo, é um poder.
Um jovem indígena de uma aldeia do sul da
cidade de São Paulo explicou-me que, ao contrário da impressão geral, o saci
não é negro, é de origem indígena. Suas características físicas, menino de uma
perna só, o sugerem. Como o curupira, que tem os pés invertidos em relação à
direção do caminhar. No século XVIII, com o incremento do tráfico negreiro,
tornou-se negro, com as características que tem hoje na cultura popular.
Assumiu a identidade do outro.
Procuramos entender o que significava aquela
novidade, de bruxas americanas a falar português e expressar concepções de um
imaginário estrangeiro. No mundo inteiro, países coloniais e países atrasados
como o nosso sofreram invasão cultural como técnica de sujeição cultural dos
nativos.
Foi interessante e foi uma descoberta. Vinham
em bandos sucessivos, e as visitas se prolongavam até antes da meia-noite. Os
primeiros grupos eram de crianças pequenas, sempre acompanhadas por alguns
adolescentes, claramente para protegê-las. Eram crianças, não eram malandros.
Os mais velhos vinham mais tarde. E os malandros vinham na véspera.
Aprendemos a comprar balas e doces com
antecipação e a preparar pacotinhos de “doçuras”. Chegamos a distribuir, todos
os anos, quase cem pacotes de balas de vários tipos. Nunca falta o “muito
obrigado” de todos e de cada um, sempre seguido de um “Deus os abençoe”. São
crianças que vêm dos bairros pobres e da favela das proximidades. É um jeito de
adoçar a vida para elas amarga.
De bruxa, nem notícia. Reinventam a prática
esdrúxula, resistem ao que não tem sentido. O Halloween tornou-se aqui um
artifício para saciar da carência de doçura esta sociedade de insuficiências e
insatisfações, que precisa imitar o que não é para chupar uma bala.
A difusão dessas práticas não é coisa apenas
de pobres. A classe média, no mundo inteiro destituída de autenticidade, aqui é
fascinada pela ideia de imitar e copiar, pela ideia de ser coadjuvante de quem
aparece no cinema.
Os ricos são, no Brasil, grandes importadores
de costumes estrangeiros, que por meio deles se disseminam. Foi o caso do Papai
Noel, nas décadas finais do século XIX, trazido pelos fazendeiros de café, do
Sudeste, que após a colheita iam para a Europa desfrutar os créditos obtidos
com a comercialização da safra.
Nosso Natal era apenas, e assim fora durante
todo o período colonial, o marco da passagem de ano. A partir do Dia de Natal,
o calendário civil mudava. O dia 24 de dezembro de 1553 foi o último do ano, e
o dia 25 de dezembro do mesmo 1553 já vinha numerado nos documentos oficiais
como 1554.
O dia festivo para as crianças era o dos
Santos Reis, 6 de janeiro, que comemora as dádivas dos Santos Reis para o
menino da manjedoura. É o dia do desmontar o presépio doméstico.
Apesar da poderosa concorrência da
mentalidade mercantil difundida pelo comércio natalino, a celebração dos Santos
Reis ainda resiste. Mesmo nas cidades, não só as do interior.
As Folias de Reis ressurgiram nas cidades,
nos bairros de migrantes oriundos da roça. Ainda fazem a visita ritual em
alguns bairros. Os migrantes são os grandes preservadores da religiosidade
popular na região metropolitana de São Paulo, justamente a região que foi por
longo tempo uma região industrial.
Foi aí pelos anos 1990 que numa noite de
janeiro ouvimos um cântico vindo do portão de casa. Acompanhado por acordes de
viola caipira, um grupo precatório de foliões dos Santos Reis entoava o “Deus
Te Salve Casa Santa”. Procedia de um bairro pobre vizinho para surpresa dos
moradores de minha rua. Nasceu daí meu livro “O coração da Pauliceia ainda
bate”.
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