O Estado de S. Paulo
A democracia liberal não é o ponto de chegada
da experiência humana, como pensava Fukuyama. Resta saber se sobrevive onde
sempre foi considerada um exemplo planetário
As eleições americanas são o fato mais
importante do ano, que por sinal está acabando. São tantos os caminhos para
interpretar sua influência que é preciso separá-los para evitar o labirinto.
Do ponto de vista da democracia, a vitória de
Donald Trump é preocupante. Ele estimulou a invasão do Capitólio, duvidou
abertamente do resultado das urnas em 2020 e promete vingança contra seus
adversários.
Há uma suposição de que o autoritarismo não
triunfa nos EUA. Não podemos esquecer aquele célebre artigo de Francis Fukuyama
para quem a democracia liberal era a forma política final do gênero humano.
De lá para cá, os regimes autoritários cresceram, adotaram métodos capitalistas, aumentaram a renda per capita das pessoas e oferecem até um certo orgulho nacional, no lugar do desejo por liberdade e direitos políticos. Segundo o professor Robert Stefan Foa, em 1995 as pessoas com renda per capita acima de US$ 20 mil viviam em 96% dos casos em democracias liberais. Apenas 34 milhões viviam em países não democráticos. Hoje há 315 milhões com renda per capita acima desse limiar que vivem em países dominados pelo autoritarismo.
No passado, supunha-se que havia um claro
limiar no qual o regime autoritário não oferecia melhoras e seria
irresistivelmente pressionado a adotar a democracia. Hoje são as democracias
liberais que oferecem pouca margem de crescimento e estão sob forte pressão.
Trump é um produto desta época em que líderes
autoritários parecem bem-sucedidos, o que fortalece sua intrínseca atração por
eles.
Num país polarizado onde brotam comunidades
de sobreviventes, entrincheirados em ranchos, com comida e água por muito tempo
e armados até os dentes, é muito possível que a violência política fortaleça o
caminho autoritário.
Quanto à proposta econômica de Trump, ela tem
um conteúdo contraditório: ele quer taxar as importações e, simultaneamente,
reduzir a inflação.
O resultado trará um grande impacto nos
países exportadores, inclusive o Brasil, cujo comércio com os EUA gira em torno
de US$ 30 bilhões.
O que deve ter influenciado eleitoralmente
foi a inflação.
Um outro impacto espera os países latinos: a
política de Trump para os imigrantes. Ele tem prometido deportação em massa de
imigrantes ilegais e tudo indica que fará isso com o apoio dos próprios
americanos, que se sentem ameaçados nos seus empregos ou acham que os
estrangeiros furam a fila nos balcões da assistência social.
A política ambiental será uma das principais
vítimas. Trump sairá de novo do Acordo de Paris e a sua delegação virá a Belém,
para a COP-30, disposta a detonar as principais saídas coletivas para deter o
aquecimento global.
Por que enfatizar meio ambiente e imigrantes
se houve dois candidatos com políticas diferentes? A verdade é que em ambos os
temas Kamala Harris teve de fazer concessões ao discurso de Trump. Claro que
sua vitória não traria e expatriação em massa, muito menos a saída do Acordo de
Paris. Mas ela já tem um tom mais severo diante da imigração e aceitou o
fracking, praticamente endossando o slogan de Trump: Drill, baby, drill.
Isso quer dizer “perfure, perfure”. O
fracking é uma técnica usada para extrair petróleo e gás natural de formações
rochosas. Consiste na injeção de água, areia e produtos químicos em alta
pressão para criar fissuras nas rochas. Foi importante na produção americana,
mas é sobretudo um forma de contaminação das águas subterrâneas. Petróleo ou
água? É uma escolha importante no século 21. O fracking teve um papel na
eleição da Pensilvânia. Kamala tentou fugir da derrota no Estado.
Na verdade, a política ambiental democrata
foi atingida também pela guerra na Ucrânia. Joe Biden acabou autorizando a
exploração de petróleo no Alasca, na região de North Slope. E, quando se trata
de guerra, as nuances ficam mais complicadas ainda. Trump possivelmente deixará
a Ucrânia se defender sozinha, ou apenas com a ajuda europeia. E, no Oriente
Médio, provavelmente manterá um apoio incondicional a Israel. Isso significa
que a discreta tentativa norte-americana de evitar o massacre de civis em Gaza
sairá de cena. Da mesma forma, os esforços para evitar uma guerra regional.
Nesse ponto, a posição democrata que mantém o
apoio a Israel, sempre pedindo prudência, acabou sendo a menos bemsucedida em
termos eleitorais. Os árabes puniram Joe Biden pela sua ambiguidade e
acreditaram em Trump, que prometeu acabar com a guerra.
Nas pesquisas de boca de urna, 70% dos
entrevistados disseram que os EUA estavam no rumo errado. Certamente, havia um
julgamento sobre a política econômica de Biden e seus reflexos no cotidiano.
Esperava-se que a questão dos direitos reprodutivos da mulher, a defesa do
aborto por Kamala Harris, fosse um ponto decisivo. Não foi, apesar de sua
importância.
Esta eleição parecia de Trump desde o início,
pois ele definiu a pauta e ocupou um imenso espaço como perseguido. The
Economist chegou a publicar um texto sobre a trumpização da política americana:
os democratas apenas reagiram.
A democracia liberal não é o ponto de chegada
da experiência humana, como pensava Fukuyama. Resta saber se sobrevive onde
sempre foi considerada um exemplo planetário.
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