Folha de S. Paulo
Ideia de ordem pós-liberal, com partido
trabalhista e novas elites, volta à baila após triunfo do republicano
A categórica vitória de Donald Trump sobre
sua rival democrata, Kamala Harris,
poderá abrir as portas para uma mudança mais profunda nos EUA? Ou será que essa
mudança, na verdade, já está inapelavelmente em curso?
Não se trata apenas do sempre citado impulso
autocrático do eleito ou do sinistro Projeto 2025,
com o qual Trump afirma ter divergências e não se sabe ao certo se e como será
adotado.
O que vale perguntar também é se não se projeta, das redefinições da sociedade e do eleitorado, alguma movimentação mais profunda com vistas a novos arranjos políticos e institucionais. A segunda onda de Trump tem a oportunidade de abalar a configuração tradicional do establishment liberal democrático com repercussões na própria representação partidária, dando contornos mais definidos ao que pareceu a alguns ser um surto populista episódico, espontâneo e anárquico na vitória de 2016.
Vai nesse sentido a conhecida proposta de um
"regime pós-liberal", exposta em recente livro por Patrick Deneen
("Mudança de Regime - Rumo a um Futuro Pós-Liberal"), um influente
interlocutor intelectual do senador JD Vance, agora vice-presidente eleito dos
EUA e forte candidato a herdeiro do trono.
Tal regime, que nasceria da inescapável crise
do liberalismo, há pouco parecia não mais que uma engenharia política
improvável, a reunir no mesmo edifício propostas que poderiam soar de esquerda e
de direita.
Deneen é entusiasta, por exemplo, da formação
de um partido de perfil trabalhista que atue para representar os interesses da
classe trabalhadora —abandonada tanto pelas elites da direita clássica
republicana quanto pelas progressistas, ligadas aos
democratas, com suas variantes identitárias pós-modernas. Em
contraste com o laissez-faire globalizante e a lógica do individualismo
vencedor ou perdedor, uma dose de intervencionismo na economia faz parte da
receita.
Ao mesmo tempo, o professor da Universidade
Notre Dame prega um embasamento da vida social em círculos comunitários e
entidades religiosas, dando ânimo a um sistema de apoios e solidariedade de
pessoas e classes. É o que ele classifica como "conservadorismo do bem
comum".
É claro que o regime pós-liberal de Deneen é
uma abstração fácil de se colocar em pé num livro e difícil de se materializar
na prática. Esse tipo de discussão, porém, não deixa de revelar que há algum
método e formulação estratégica no mundo de Trump —que já controla, por
exemplo, o Partido
Republicano, hoje uma estrutura a seu serviço, com o consequente
desalojamento de lideranças tradicionais da direita, muitas das quais se viram
na circunstância de apoiar a candidata democrata. Para onde irão? O que esperar
do futuro da velha sigla?
É verdade também que tudo isso pode terminar,
por hipótese, num grande fiasco econômico e até mesmo em algum grave tropeço
que motive um processo de impeachment —por ora, fora de qualquer cogitação,
dado o enorme capital político acumulado e a sólida maioria parlamentar
conquistada. Ou mesmo numa retomada de terreno por parte dos democratas, caso
reajam à altura do que está acontecendo.
Neste momento, são especulações, mas o
retorno triunfal de Trump, que captura a revolta contra as elites, não é um
fato trivial na história americana.
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