Folha de S. Paulo
Conspiração às claras é estranho fruto de uma
realidade paralela
Quando do atentado do Riocentro, 40 e tantos anos atrás, dirigíamos a TV-E, ao lado de um colega universitário. Recebemos então visitas, uma delas do coronel-ministro. Ele recomendou cautela no noticiário, pois "agimos abertamente, enquanto a direita age embuçada". A conversa, jogo de cena para encobrir censura, valeu uma resposta sorrateira: "Será mesmo, ministro, é difícil validar essa hipótese..." E ele "como assim, então não acham que seja coisa da direita?" Retrucamos: "se estão embuçados, como saber o que são?"
O diálogo enviesado ficou na memória, pois
naquele instante já estava claro que o atentado provinha do sistema. Logo, só
eles próprios saberiam quem estava encapuzado. O regime
militar estertorava (daí, aliás, a razão do terrorismo), já não
mais se invadiam residências de cidadãos inocentes como o ex-deputado Rubens
Paiva, mas ainda era tempo de cautela.
O incidente ganha pertinência no quadro
das 37 pessoas
acusadas de sedição, o núcleo de governo do ex-presidente
Bolsonaro, cujos crimes atribuídos podem chegar
a 28 anos de prisão. Além das já conhecidas tentativas de
abolição violenta do Estado de Direito, estarrece o intento de assassinar as
mais altas autoridades da República recém-eleitas.
Há de velho e novo nisso tudo. Nova é a
transparência do mal à luz do dia. Meio século atrás, algo se embuçava nas
trevas dos porões. Mas a trama centralizada no Planalto sempre transpareceu no
regurgitamento verbal do mandatário, nos acampamentos, nas ações terroristas,
nos documentos e nos celulares dos mandantes. Crime organizado, com
delinquentes agindo a inferno aberto.
Conspiração às claras é estranho fruto de uma
realidade paralela, com espionagem semioficial e forma espectral de vida criada
pelas redes. A massa arrebanhada trafegava num planeta imaginário feito de
celulares, enquanto uma quadrilha empoderada, os mentores da trama, surfava na
mesma impunidade sonhada pelos escritórios do crime, despercebido substrato do assassinato
de Marielle Franco. Ao lado, inédita lógica tabajara: o golpe seria
acionado por vivandeiras acampadas, nada de tanques desmoralizados por fumaça.
Era, na autodefinição de um dos generais sediciosos, um "alopramento da
rataria, com ética abaixo da cintura".
Ações toscas, linguagem sórdida de submundo,
mas com a coerência sádica explicitada por M. Blanchot como o cerne da moral
sadiana: "A única regra de conduta é que eu prefira tudo que me afeta com
felicidade e que eu tenha como nada tudo que em minha preferência possa
resultar de mal para o outro" (em "Lautréamont e Sade"). Nenhuma
razão política, apenas o gozo de lesar o próximo.
Na derrama de ficções, a única verdade é a
traição. Valeria para todo golpe de Estado. Mas, no caso, o álibi fantasioso do
anticomunismo deu lugar a uma modalidade extrema, moralmente intolerável e
sádica de agarramento ao poder. Nada, como no passado, de matar ideias de
esquerda. O que esteve mesmo em pauta foi o desejo confesso por parte de
chefetes e vivandeiras, de exterminar fisicamente o outro de si mesmo, o
vizinho pensante. Razoável agora é a perspectiva de que as "quatro
linhas" traçadas com água suja se convertam nas quatro paredes sólidas da
punição.
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