domingo, 1 de dezembro de 2024

Os generais e o Estado de Direito - Arthur Trindade*

O Globo

Não precisamos de militares legalistas. Precisamos de militares submetidos à força da lei, ao poder da toga

Há uma enorme diferença entre Estado de Direito (Rule of Law) e legalismo (rule by law). O Estado de Direito implica a ideia de que todos são iguais perante a lei e de que o poder público será limitado por ela. É o governo da lei, sendo a Constituição a lei fundamental. O legalismo refere-se à ideia de que os governos agem por meio de leis, decretos e portarias. O Estado de Direito diz respeito ao conteúdo das normas, e o legalismo está relacionado a sua forma.

Nem sempre as leis propostas pelos governantes estão de acordo com o Estado de Direito e a Constituição. Cabe ao Supremo Tribunal Federal (STF) avaliar os casos de conflito entre as leis propostas e a Carta.

Esses dois conceitos nos ajudam a entender a postura de alguns militares envolvidos na tentativa de golpe de Estado. A revelação das conversas dos conspiradores mostra que os generais Mário Fernandes, Estevam Theophilo e Freire Gomes tinham visões distintas sobre o tema.

Com o fim do regime militar, os militares passaram a cultivar a imagem de legalistas. Fazia sentido, pois o golpe de 1964 foi feito à revelia da lei. A declaração do general Mário Fernandes de que os conspiradores deviam agir fora das “quatro linhas” é elucidativa. Afinal, segundo ele, não foi preciso nenhuma lei para derrubar o governo João Goulart. Fernandes claramente não é um legalista.

A postura do general Theophilo revela outra posição. Segundo as conversas relevadas pela Polícia Federal, ele disse que executaria as ações para Garantia da Lei e da Ordem e executaria o Estado de Sítio, desde que Jair Bolsonaro assinasse um decreto. Se a norma tivesse sido assinada, ele teria desencadeado o golpe. Seria um golpe legalista.

Finalmente, a posição de Freire Gomes mostrou que alguns generais entenderam a diferença entre Rule of Law e rule by law. Mesmo que tivesse formato legal, a minuta era claramente inconstitucional. Caberia, portanto, ao STF analisar a constitucionalidade da medida.

Jogar dentro das “quatro linhas”, como repetia exaustivamente Bolsonaro, não quer dizer agir de acordo com o Estado de Direito. Não basta que o formato pareça legal. É necessário que o conteúdo da norma seja constitucional. A Constituição tem muito mais que quatro linhas. E essas linhas são interpretadas pelo Poder Judiciário.

Embora distintas, as posições de Fernandes e Theophilo revelam a relutância de alguns militares em aceitar os princípios do Estado de Direito, que pressupõe a submissão da espada à toga. Cabe ao Judiciário, e não às Forças Armadas, decidir a legalidade das normas. É preciso que todos os militares entendam isso. Não precisamos de militares legalistas. Precisamos de militares submetidos à força da lei, ao poder da toga e ao controle civil.

*Arthur Trindade é professor de sociologia da Universidade de Brasília

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