É imoral e custoso restaurar quinquênio pago aos juízes
O Globo
Depois de fracasso de PEC, tribunais tentam
ressuscitar os aumentos automáticos por via administrativa
No momento em que o país precisa conter os
gastos públicos para equilibrar suas finanças, ministros do Superior Tribunal
de Justiça (STJ)
e do Tribunal Superior do Trabalho (TST)
ressuscitaram, a pedido da Associação dos Juízes Federais (Ajufe), o pagamento
de reajustes automáticos de 5% aos magistrados a cada cinco anos, conhecido
como quinquênio. Extinta em 2006, essa benesse não obedece a nenhum parâmetro
de mérito e deixa de considerar a situação fiscal crítica do país. O salário
dos magistrados — uma das categorias mais privilegiadas do funcionalismo
público — sobe por inércia com o passar do tempo, mesmo que a Justiça seja
conhecida por lentidão e burocracia.
A decisão deixa dúvida se será obedecido o teto salarial do setor público, estabelecido pela Constituição em R$ 44.088,52, remuneração de ministro do Supremo Tribunal Federal (STF). A bolada que juízes receberão com os atrasados e o próprio quinquênio, oficialmente chamado de Adicional por Tempo de Serviço (ATS), é considerada “indenizatória” e não se submete ao limite constitucional. Por enquanto, apenas o TST determinou o pagamento dos atrasados. É difícil, porém, que o STJ resista a pressões e não siga a Justiça do Trabalho. E é evidente que o sucesso incentivará juízes e desembargadores dos demais tribunais a tentar obter o mesmo privilégio.
No início do ano, houve uma tentativa de
ressuscitar o quinquênio por meio de Proposta de Emenda à Constituição (PEC),
encaminhada pelo presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG). A reação
forçou um recuo, enquanto o Congresso se concentrava em aprovar medidas para
socorrer o Rio Grande do Sul. Agora, o caminho escolhido foi administrativo,
certamente para evitar a exposição que o assunto teria se voltasse ao
Congresso. A PEC, que também concedia a regalia ao Ministério Público, chegou a
ser aprovada pela Comissão de Constituição e Justiça do Senado. O governo
calculou que representaria R$ 40 bilhões por ano a mais no gasto público. De
acordo com nota técnica da Consultoria de Orçamento, Fiscalização e Controle do
Senado, a despesa adicional chegaria a R$ 81,6 bilhões até 2026.
Os tribunais brasileiros, de acordo com o
Tesouro Nacional, gastam 1,61% do PIB, ante 0,3% nos países desenvolvidos e
0,5% nas demais economias emergentes. Os gastos do Judiciário são quatro vezes
a média mundial, que gira em torno de 0,4%. A experiência mostra que os gastos
efetivos ultrapassam as estimativas, porque vantagens obtidas por corporações
do serviço público costumam passar por um efeito cascata e beneficiar outras
categorias. Cria-se um festival de bondades à custa do contribuinte. Em maio,
pesquisa da Quaest revelou que 76% da população rejeitava a PEC.
Há no STF, sob relatoria do ministro
Cristiano Zanin, uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental,
impetrada pelo Partido Novo, contra a regalia. É imperativo rejeitar a volta do
quinquênio, por ser imoral, custoso e anacrônico. Os juízes já estão na elite
do funcionalismo, têm direito a dois meses de férias (pagos em dinheiro se
desejarem) e a todo tipo de auxílio. Em contraste, as finanças públicas padecem
de desequilíbrio crônico. São urgentes medidas estruturais de ajuste fiscal.
Manter os privilégios de categorias no Judiciário só faz aumentar o custo do
ajuste necessário, invariavelmente pago pelo resto da população.
Transição demográfica impõe desafio ao
recrutamento de novos soldados
O Globo
Maiores Exércitos do mundo estão aquém da
necessidade de pessoal em momento de conflitos mais intensos
A queda no crescimento populacional não
preocupa apenas demógrafos e economistas. Já afeta há algum tempo as Forças
Armadas das grandes potências, que não têm conseguido renovar suas tropas com
jovens recrutas. Depois da Guerra do Golfo, em 1991, houve uma suposição
generalizada de que a tecnologia permitiria substituir grandes contingentes de
soldados por poucos militares altamente treinados, capazes de operar armas de
alta precisão. A guerra na
Ucrânia, porém, tem forçado a reavaliação dessa premissa, diz
Stephen Biddle, historiador militar e especialista em política de defesa do
Council of Foreign Relations, de Nova York. A alta mortalidade num conflito que
já dura três anos põe em xeque esse modelo de guerra — não por acaso, a Rússia buscou tropas
na aliada Coreia do Norte. A tecnologia de precisão já se mostrou insuficiente
em conflitos mais curtos.
Em contexto de crescente tensão geopolítica,
com aumento estimado em 65% no número de choques armados nos últimos três anos,
de acordo com o Índice de Intensidade de Conflito, da consultoria britânica
Verisk Maplecroft, os orçamentos militares cresceram, mas esbarram na falta de
soldados para lutar. No ano passado, a Alemanha gastou
US$ 63,7 bilhões com Defesa, um recorde, segundo o Instituto Internacional de
Estudos Estratégicos (IISS), de Londres. Para este ano, espera-se que destine
US$ 76,8 bilhões, atingindo pela primeira vez os 2% do PIB em despesas com as
Forças Armadas estabelecidos como piso pela Otan. A Alemanha também tem a meta
de contar com 203 mil militares até 2031. Mas não será fácil, se considerarmos
que, no ano passado, o contingente alemão perdeu 1.500 militares. A tropa tem
hoje 181,5 mil homens e mulheres.
Nas Forças Armadas do Reino Unido,
faltaram 5.800 soldados no ano passado. O jornal especializado UK Defence
revelou que o país não atinge as metas de recrutamento desde 2010. Os Estados
Unidos, maior potência militar do mundo, também enfrentam
dificuldades devido à demografia. Há pelo menos dois anos, as Forças Armadas
americanas têm problemas no recrutamento. Em 2022, a meta era recrutar 60 mil.
Faltaram 15 mil. A força do Exército regular americano, de 452 mil homens e
mulheres, é “a menor desde antes da Segunda Guerra", segundo artigo
publicado em janeiro pelo tenente-coronel Frank Dolberry e por Charles McEnany,
analista de segurança nacional do Exército americano.
A China, que tem a segunda
maior população mundial, passa pela mesma dificuldade. Em raro gesto de
transparência, o Exército chinês admitiu no ano passado que faltavam militares
capazes de manejar armamentos de última geração. Num relatório divulgado pelo
South China Morning Post, o porta-voz do Exército mencionou a falta de pessoal
preparado para servir nos navios comissionados para renovar a frota da Marinha.
Mesmo que se considere que a carreira militar não seduz jovens como no passado,
a demografia se mostra um inimigo difícil de bater.
Pacote inepto de Lula eleva patamar dos juros
Folha de S. Paulo
Banco Central precisará endurecer política
monetária para conter inflação; Congresso terá de agir com responsabilidade
Para qualquer pessoa com alguma noção da
realidade, era totalmente previsível que resultaria em desastre financeiro a
atitude do governo Luiz Inácio Lula da
Silva (PT)
de divulgar um pacote
pífio de controle de gastos associado a uma promessa vistosa de
redução do Imposto de
Renda.
Em apenas dois dias, os juros de
mercado saltaram mais de 1 ponto percentual, e as expectativas já incorporam
que a taxa Selic,
do Banco Central,
poderá superar 14,5% ao ano nos próximos meses. A irresponsabilidade de Lula
alimentou a ameaça de disparada da dívida pública, em vez de contê-la, o que
afetará todos os brasileiros.
Diante da descarada recusa do governo em
realizar um ajuste sério, a cotação do dólar chegou
a atingir R$ 6,10 na sexta (29), novo recorde
de desprestígio da moeda nacional. O resultado é óbvio: mais lenha
na fogueira da inflação,
cujas chamas já vinham crescendo pela pressão de gastos públicos excessivos.
Já não se dúvida que o IPCA supere 5% em
2025, 2 pontos percentuais acima da meta do BC. Assim se encarecem
matérias-primas, alimentos e bens intermediários essenciais para a produção e o
transporte de artigos de primeira necessidade.
O cenário de descontrole fiscal dificulta a
tarefa do Banco Central de estabilizar os preços, a ponto de torná-la
impossível sem elevação de juros já exorbitantes. Longe de conjecturas apenas
teóricas, trata-se de um golpe direto nos mais pobres, que são os grandes
prejudicados.
O aperto das condições financeiras reverbera
imediatamente no custo de financiamento de famílias e empresas. O torniquete do
endividamento sufoca o setor produtivo e destrói intenções de investimentos e
possibilidades de consumo das famílias.
É verdade que a economia do
país ainda crescerá 3% ou mais neste ano, e o desemprego está
baixo. Esse quadro é frágil, porém, pois se ancora em gastos federais
insustentáveis, quando o necessário seria criar condições duradouras para juros
baixos.
Está sendo contratada uma desaceleração da
atividade que cedo ou tarde atingirá o emprego e piorará os indicadores
sociais. A esta altura já não há dúvida de que o presidente da República e seu
partido não têm uma compreensão clara da emergência em que colocaram o país.
Resta ao ministro Fernando
Haddad, da Fazenda, fazer o discurso da sensatez, que tem cada vez
menos credibilidade. Culpar o governo passado, ademais, pode açular a
militância petista, mas em nada aumenta a confiança numa gestão que desdenha da
solvência das contas públicas.
Não há mais motivos para esperar algum
lampejo de lucidez de Lula —que nem se preocupa em fingir alguma
responsabilidade orçamentária. Resta esperar que lideranças
do Congresso, em nome do pragmatismo, examinem as propostas a serem
apresentadas com a responsabilidade ausente no Palácio do Planalto.
Mais leitores para um futuro melhor
Folha de S. Paulo
Taxa de brasileiros que não têm hábito de ler
supera a dos que têm; governos precisam facilitar e estimular a leitura
Menos brasileiros leem livros hoje, seja em
suporte digital ou impresso, do que há cinco anos. É o que revela a pesquisa
Retratos da Leitura no Brasil, do Instituto Pró-Livro, o mais amplo mapeamento
sobre essa atividade no país, realizado desde 2007.
Pela primeira vez na série histórica, a taxa
de não leitores superou a de leitores: 53% contra 47%. Em 2019, a
parcela dos que costumam ler era de 52%.
Isso mesmo com o amplo critério para definir
hábito de leitura. Quem leu parte de um livro nos últimos três meses, como um
trecho da Bíblia, já entra na conta.
A queda absoluta entre as pessoas que afirmam
ter o costume de ler, em um país no qual elas historicamente nunca vicejaram,
impressiona: o Brasil perdeu mais de 11 milhões de leitores nos últimos nove
anos.
Trata-se de uma crise que atinge quase todas
as faixas etárias. No entanto ela é particularmente crítica na de 5 a 10 anos,
período que compreende uma
fase essencial de alfabetização.
A redução nesse estrato foi de nove pontos
percentuais nos últimos cinco anos. O dado é temerário porque indica que essas
crianças deixaram de ler livros nas escolas, já que obras didáticas e
paradidáticas também são contabilizadas na pesquisa.
O índice reflete descaso de governos nas três
esferas. Como a Folha revelou em setembro, obras literárias que
deveriam ter sido compradas para abastecer escolas em 2022, na gestão de Jair
Bolsonaro (PL), ainda não haviam sido
nem contratadas pelo Ministério da Educação de Luiz Inácio Lula da
Silva (PT),
em seus quase dois anos de mandato.
A prefeitura de Ricardo Nunes (MDB), em São Paulo,
também atrasou seu programa de distribuição de exemplares na cidade mais
populosa e rica do país.
Enquanto o fomento ao livro engatinha, outras
práticas galopam para dominar as atenções do potencial leitorado.
Entre as atividades com que os entrevistados
declararam ocupar seu tempo livre, o uso da internet saltou
de 47% para 78% entre 2015 e 2024. No mesmo período, o uso de WhatsApp ou Telegram subiu
de 43% para 71%, e o de redes sociais, de 35% para 49%.
O hábito da leitura não é panaceia, mas são
consensuais seus benefícios para a cognição, a criatividade e a expressão de
ideias.
Num país que precisa desenvolver sua economia, incrementar
índices educacionais e cultivar um nível saudável de debate
público, governos têm o dever de facilitar o acesso a livros e incentivar a
leitura, principalmente na infância e adolescência.
É hora de uma nova direita
O Estado de S. Paulo
Contaminado pela inelegibilidade, pelo
indiciamento e pela fadiga do seu reacionarismo, Bolsonaro vê hoje o
fortalecimento de alternativas ao seu nome na direita. Boa notícia para o País
Se ainda tentava encontrar meios de dar prova
de vida enquanto sonhava com uma anistia que lhe devolvesse as credenciais
políticas e eleitorais, o ex-presidente Jair Bolsonaro teve suas chances
drasticamente reduzidas com a nova condição de indiciado. Embora sejam incertos
os desdobramentos do indiciamento apresentado pela Polícia Federal – dele e de
outras 36 pessoas do seu entorno pelo envolvimento numa suposta tentativa de
golpe de Estado destinado a impedir a posse do presidente Lula da Silva –, há pelo
menos uma certeza: o flagrante enfraquecimento político de Bolsonaro.
Os bolsonaristas mais fiéis costumam usar o
exemplo de Lula da Silva – que cumpria pena de prisão por corrupção, de lá saiu
em razão de questões processuais, ganhou a eleição e hoje é novamente
presidente – para alimentar a esperança de que Bolsonaro, uma vez favorecido
por uma anistia que lhe permita disputar eleições, possa voltar ao poder nos
braços do povo. Mas há uma diferença essencial entre os dois casos: Lula não
tinha (como não tem) herdeiros evidentes à altura; já no caso de Bolsonaro há
um congestionamento de candidatos razoavelmente viáveis para herdar seus
eleitores. Os bolsonaristas, contudo, não entregam os pontos e, sobretudo os
filhos do capitão, desautorizam de forma agressiva quem quer que ouse se
apresentar como o líder do bolsonarismo sem Bolsonaro.
Mas a realidade parece cada vez mais
contrariar a vontade dos devotos de Bolsonaro. É claro que, mesmo fora da
cédula eleitoral na próxima disputa presidencial, o ex-presidente ainda é um
portento eleitoral, mas é inegável que sua capacidade de ditar os rumos da
direita se reduziu drasticamente – e a prova disso é que seus enroscos
judiciais são cada vez mais um assunto da família Bolsonaro e cada vez menos um
assunto do Centrão.
O fato, portanto, é que a direita está diante
de dois caminhos possíveis: o bolsonarismo golpista de um lado; e o liberalismo
e a democracia de outro. Alguns candidatos a substituir Bolsonaro ainda
titubeiam entre um e outro, caso, por exemplo, do governador de São Paulo,
Tarcísio de Freitas. Ao comentar o indiciamento do ex-presidente, Tarcísio
disse que a acusação “carece de provas” e que Bolsonaro “respeitou o resultado
da eleição e a posse aconteceu em plena normalidade e respeito à democracia”.
Ora, o inquérito corre sob sigilo, razão pela qual não é possível dizer se há
provas ou não. E é escarnecer da inteligência alheia dizer que Bolsonaro
respeitou o resultado da eleição, quando todos sabem que ele se recusou a
passar a faixa a Lula e que seus seguidores tocaram o terror em Brasília nos
dias imediatamente anteriores e posteriores à posse do petista. Sobrou
desrespeito à democracia.
Se o governador Tarcísio hesita, este jornal
não. Desde sempre, o Estadão deixou claro que o bolsonarismo é
basicamente reacionarismo, um extremismo destrutivo e orgulhosamente
delinquente, que prospera somente num ambiente de conflagração. É, portanto, a
negação da direita liberal, que é democrática, sustenta-se nas ideias
republicanas e pugna pela manutenção das instituições. Os candidatos a liderar
essa direita precisam saber que ainda estão para nascer sociedades mais
bem-sucedidas do que aquelas ancoradas em direitos e liberdades individuais e
coletivos, em sistemas de freios e contrapesos, em democracias liberais que
buscam uma alocação eficaz de recursos e meios de oferecer competividade e
produtividade.
Não é improvável que vejamos esses dois
caminhos bifurcados em 2026. Que tenhamos em 2026 uma direita que expresse o
cansaço de parcela considerável do Brasil com o modo bolsonarista de fazer
política – assim como é desejável, embora improvável, uma esquerda moderna, com
visão atualizada dos problemas que o País precisa enfrentar. Hoje pagamos a
conta tanto do modelo de implosão do sistema político e de agressividade e
ataque às instituições que marcam o bolsonarismo quanto do pensamento rupestre
na forma de gerir o Estado que marca o lulopetismo. Mas há uma boa notícia pelo
menos em relação ao primeiro: a perda de vitalidade de Bolsonaro pode acelerar
o processo de superação dessa fase tenebrosa da história brasileira.
O poste de Lula no Ministério da Fazenda
O Estado de S. Paulo
Esqualidez do pacote fiscal, anunciado como
propaganda eleitoral, prova que Haddad é apenas o operador dos interesses
eleitorais do presidente, sem poder para fazer o que precisa ser feito
Nos quase dois anos de governo de Lula da
Silva, cultivou-se no mercado financeiro a expectativa quase mística de que o
ministro da Fazenda, Fernando Haddad, seria o guardião da sobriedade econômica
ante o notório desprezo do lulopetismo pelo equilíbrio fiscal e pelo controle
da inflação. Mas eis que veio o tão esperado anúncio do pacote de revisão de
gastos do governo, e ficou claro que Haddad é apenas o poste de Lula no
Ministério da Fazenda.
Acabou a ilusão de que Haddad poderia ser
para Lula o que Fernando Henrique Cardoso foi para Itamar Franco, outro notório
estatista que afinal se limitou a assinar as medidas necessárias para a
efetivação do Plano Real. Se FHC conseguiu contornar o intervencionismo de
Itamar (que, até as vésperas do Real, insistia em alguma forma de controle de
preços), Haddad não conseguiu (e, em seu favor, diga-se que ninguém
conseguiria) conter o ímpeto eleitoreiro de Lula, que determina todos e cada um
de seus passos e de suas decisões.
No pronunciamento de Haddad, o verniz mais
político do que deveria ser essencialmente econômico revelou, no fundo, não uma
fortaleza similar a outros que, no passado, ocuparam a mesma cadeira e
triunfaram politicamente, como Rodrigues Alves, Getúlio Vargas e FHC. Nem a
robustez de homens notáveis que exerceram seu poder à frente da economia de
forma quase inquestionável, como Rui Barbosa, Santiago Dantas, Delfim Netto e
Mario Henrique Simonsen. O que se viu naqueles 7 minutos e 18 segundos de
anúncio do pacote foi algo diferente: a fragilidade do ministro da Fazenda.
Parece um paradoxo, e é mesmo: um ministro
convertido na face visível de um pacote anunciado em rede nacional como se
fosse propaganda eleitoral, e ao mesmo tempo porta-voz do resultado de um
extenuante esforço da equipe econômica, mas que adquiriu contornos populistas –
com direito a slogan marqueteiro de consistência duvidosa (“Brasil mais forte,
governo eficiente, país justo”). É puro Lula.
Era inquestionável, até aqui, o papel de
Haddad como um dos poucos trunfos de responsabilidade entre os auxiliares de
Lula. Mas seu calvário rumo ao anúncio demonstra o isolamento e o esmaecimento
da equipe econômica e, sobretudo, a disputa entre forças políticas antagônicas
no governo, na qual o ministro claramente foi derrotado. Em maio, quando o
Orçamento de 2024 estava para ser enviado ao Congresso, o mesmo Haddad foi alvo
de um ataque especulativo sobre sua autoridade. O chefe da Casa Civil, Rui Costa,
tentava convencer Lula a desistir da meta de déficit zero para este ano, ponto
de honra de Haddad. Deu-se um ataque articulado, que envolveu deputados
petistas e declarações públicas da presidente do PT, Gleisi Hoffmann. A
imprensa classificou as críticas ao plano do ministro da Fazenda como “fogo
amigo”, mas o nome certo é motim. Ao fim, o projeto de Orçamento foi aprovado,
mas o estrago estava feito.
De lá para cá, Haddad seguiu recebendo golpes
abaixo da cintura, a ponto de um dos candidatos a substituir Gleisi Hoffmann na
presidência do PT, o prefeito de Araraquara, Edinho Silva, vir a público
alertar o óbvio: não há registro na história da existência de um governo forte
com um ministro da Fazenda fraco. Silva mirou em Gleisi, mas esqueceu um
personagem central, o chefe Lula da Silva.
Ninguém duvida que o modo lulista de governar
requer bajuladores fiéis, estímulo aos conflitos internos (para triunfo único
do líder máximo) e acenos contraditórios a públicos distintos, conforme as
circunstâncias mais convenientes para si. Ocorre que Lula e o PT ignoram que
ter um ministro da Fazenda confiável e com respaldo do chefe para exercer poder
é imprescindível num país cuja economia vive em sobressalto. FHC demitiu amigos
para preservar a autoridade de Pedro Malan na política econômica. Delfim era o
homem forte de Emílio Médici. Simonsen, o de Ernesto Geisel. É essa sabedoria
presidencial que permite ao País distinguir ministros da Fazenda dotados de
instrumentos necessários para fazer o que é preciso daqueles que se convertem
em meros operadores obedientes dos seus chefes.
Investida contra o aborto legal
O Estado de S. Paulo
Comissão da Câmara aprova PEC que na prática
liquida um direito em vigor há 80 anos
A Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da
Câmara aprovou uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) para inviabilizar o
aborto legal no Brasil, um direito garantido às mulheres desde 1940.
Apresentada em 2012 pelo então deputado Eduardo Cunha, hoje cassado, a
iniciativa recebeu agora a chancela de 35 integrantes do colegiado mais
importante da Casa. Apenas 15 parlamentares se posicionaram contra o texto.
A mudança sugerida por Cunha e apoiada pela
relatora da PEC, a deputada bolsonarista Chris Tonietto (PL-RJ), pode parecer
sutil. Mas a ideia, que consiste em incluir no trecho do artigo 5.º da
Constituição que trata da “inviolabilidade do direito à vida” a expressão
“desde a concepção” tem efeito substancial.
Na prática, o que se pretende é impedir o
aborto em caso de estupro, risco de morte da mulher ou de gestação de
anencéfalos, que foi autorizado pelo Supremo Tribunal Federal (STF). As duas
primeiras hipóteses de interrupção de gravidez constam do Código Penal há mais
de oito décadas. E a última foi liberada pela Corte Constitucional justamente
no ano em que Cunha apresentou a PEC na Câmara.
Vê-se o intuito de demolir dois marcos
civilizatórios. Mas há outros riscos. A iniciativa pode, por exemplo,
dificultar a fertilização in vitro no País, haja vista que embriões
são descartados nesse processo — em 2023, foram 110 mil, que, numa
interpretação rígida do texto proposto, seriam todos considerados vítimas de
homicídio. Além disso, a PEC põe em risco pesquisas com células-tronco,
fundamentais para o avanço da ciência e da saúde.
Para tantos retrocessos, nem esforço
argumentativo houve. Na apresentação da PEC, Cunha limitou-se a dizer que “a
discussão acerca da inviolabilidade do direito à vida não pode excluir o
momento do início da vida”. E sentenciou que “a vida não se inicia com o
nascimento, e sim com a concepção”, ainda que essa questão esteja longe de ser
pacífica na sociedade brasileira.
Embora haja mais perguntas filosóficas,
científicas e jurídicas do que respostas sobre quando começa a vida, os
deputados parecem cheios de certeza. Do contrário, Eli Borges (PL-TO), que já
presidiu a Frente Parlamentar Evangélica, não a exporia de forma tão
cristalina. Segundo ele, “dizem que não podemos trazer questões religiosas
porque o Estado brasileiro é laico”, o que é um fato, “mas somos religiosos,
sim, e a imensa maioria da população é conservadora”.
Há tempos a bancada bolsonarista tenta fazer avançar projetos com vista a acabar com as exceções que hoje permitem o aborto. Em junho, o plenário da Câmara aprovou a urgência de um projeto de lei para igualar o aborto acima de 22 semanas ao crime de homicídio. Com isso, o texto poderia ir direto a plenário, mas, diante da reação negativa da sociedade, a matéria foi para uma comissão, onde dormita. Espera-se que a PEC de Eduardo Cunha tenha destino semelhante, em nome da dignidade humana.
Altivez contra o neocolonialismo
Correio Braziliense
Está correta a postura do presidente Lula ao
rebater as acusações irresponsáveis e demagógicas de políticos e empresas
francesas contra o agro brasileiro
Já o deputado Antoine Vemorel, do Droite
Republicaine, chegou a acusar o Mercosul - bloco formado por Argentina, Brasil,
Paraguai e Uruguai - de utilizar produtos cancerígenos nas carnes que exporta
para a Europa. - (crédito: Reprodução do portaldaindustria)
Está correta a postura do presidente Lula ao
rebater as acusações irresponsáveis e demagógicas de políticos e empresas
francesas contra o agro brasileiro. Como ressaltou o chefe do Planalto, é
importante que o Brasil avance nas negociações entre Mercosul e União Europeia
— sem deixar de responder a eventuais leviandades — e amplie a presença
brasileira em mercados ascendentes, como Índia e China, que somam quase 30% da
população global.
O posicionamento do governo brasileiro vem no
momento em que as tratativas entre o Mercosul e a União Europeia chegam a uma
etapa decisiva. Em Brasília, a última semana foi marcada por extensas reuniões
entre negociadores dos dois blocos econômicos a fim de dirimir ao máximo as
pendências relativas ao acordo de livre comércio, em construção há mais de 20
anos. A intenção é avançar nas questões técnicas, passando para um nível
superior, no qual se faz necessário o diálogo político.
Existe uma expectativa de que chefes de
Estado sul-americanos anunciem resultados relevantes esta semana, na reunião de
cúpula do Mercosul em Montevidéu. Em visita a Brasília, o presidente eleito do
Uruguai, Yamandú Orsi, manifestou confiança nos trabalhos diplomáticos.
"Somos otimistas, como Mercosul e como região, somos otimistas com a
possibilidade de seguir estreitando laços com outras regiões, fundamentalmente
com a Europa", disse.
Como se vê, a busca pela concretização do
acordo Mercosul-UE ocorre por meio negociação coletiva, não cabendo neste
momento a resistência de um país-membro em particular — o que dirá de uma
empresa. Na quarta-feira, ao se manifestar sobre o tema, Lula foi direto ao
ponto. "Se os franceses não quiserem o acordo, eles não apitam mais nada,
quem apita é a Comissão Europeia. A Ursula von der Leyen (presidente da
Comissão Europeia) tem procuração para fazer o acordo, e eu pretendo assinar
esse acordo este ano ainda", esclareceu.
Existem razões adicionais, de caráter
geopolítico, para o Brasil avançar em acordos multilaterais de comércio
exterior. Com a volta de Donald Trump à Casa Branca a partir de janeiro, é
iminente uma ofensiva tarifária por parte dos Estados Unidos, com efeito sobre
todos os países que mantêm comércio com a maior economia do mundo. Faz sentido,
portanto, o governo brasileiro ampliar o leque de mercados interessados em
adquirir produtos nacionais.
Essa mesma estratégia se aplica no
estreitamento diplomático com a China. A recente visita do presidente Xi
Jinping ao Brasil, com a assinatura de 37 acordos comerciais e de
cooperação, atende aos interesses dos dois países. Apenas no item exportação, a
entrada de novos produtos, como farinha de peixe e gergelim, no mercado chinês
tem potencial de US$ 450 milhões na balança comercial brasileira.
Com pragmatismo e sem subserviência, o Brasil constrói condições para ganhar relevância na economia internacional. Nesse projeto, é fundamental o governo e o setor produtivo deixarem claro que não aceitam imposições que remetam ao colonialismo ou que causem danos, por meio de desinformação, à excelência do agronegócio.
Um comentário:
A direita com a qual o Estadão sonha não existe, pelo menos não no Brasil. É uma visão utópica quando se constata a realidade da classe política brasileira.
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