domingo, 1 de dezembro de 2024

O que a mídia pensa | Editoriais / Opiniões

É imoral e custoso restaurar quinquênio pago aos juízes

O Globo

Depois de fracasso de PEC, tribunais tentam ressuscitar os aumentos automáticos por via administrativa

No momento em que o país precisa conter os gastos públicos para equilibrar suas finanças, ministros do Superior Tribunal de Justiça (STJ) e do Tribunal Superior do Trabalho (TST) ressuscitaram, a pedido da Associação dos Juízes Federais (Ajufe), o pagamento de reajustes automáticos de 5% aos magistrados a cada cinco anos, conhecido como quinquênio. Extinta em 2006, essa benesse não obedece a nenhum parâmetro de mérito e deixa de considerar a situação fiscal crítica do país. O salário dos magistrados — uma das categorias mais privilegiadas do funcionalismo público — sobe por inércia com o passar do tempo, mesmo que a Justiça seja conhecida por lentidão e burocracia.

A decisão deixa dúvida se será obedecido o teto salarial do setor público, estabelecido pela Constituição em R$ 44.088,52, remuneração de ministro do Supremo Tribunal Federal (STF). A bolada que juízes receberão com os atrasados e o próprio quinquênio, oficialmente chamado de Adicional por Tempo de Serviço (ATS), é considerada “indenizatória” e não se submete ao limite constitucional. Por enquanto, apenas o TST determinou o pagamento dos atrasados. É difícil, porém, que o STJ resista a pressões e não siga a Justiça do Trabalho. E é evidente que o sucesso incentivará juízes e desembargadores dos demais tribunais a tentar obter o mesmo privilégio.

No início do ano, houve uma tentativa de ressuscitar o quinquênio por meio de Proposta de Emenda à Constituição (PEC), encaminhada pelo presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG). A reação forçou um recuo, enquanto o Congresso se concentrava em aprovar medidas para socorrer o Rio Grande do Sul. Agora, o caminho escolhido foi administrativo, certamente para evitar a exposição que o assunto teria se voltasse ao Congresso. A PEC, que também concedia a regalia ao Ministério Público, chegou a ser aprovada pela Comissão de Constituição e Justiça do Senado. O governo calculou que representaria R$ 40 bilhões por ano a mais no gasto público. De acordo com nota técnica da Consultoria de Orçamento, Fiscalização e Controle do Senado, a despesa adicional chegaria a R$ 81,6 bilhões até 2026.

Os tribunais brasileiros, de acordo com o Tesouro Nacional, gastam 1,61% do PIB, ante 0,3% nos países desenvolvidos e 0,5% nas demais economias emergentes. Os gastos do Judiciário são quatro vezes a média mundial, que gira em torno de 0,4%. A experiência mostra que os gastos efetivos ultrapassam as estimativas, porque vantagens obtidas por corporações do serviço público costumam passar por um efeito cascata e beneficiar outras categorias. Cria-se um festival de bondades à custa do contribuinte. Em maio, pesquisa da Quaest revelou que 76% da população rejeitava a PEC.

Há no STF, sob relatoria do ministro Cristiano Zanin, uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental, impetrada pelo Partido Novo, contra a regalia. É imperativo rejeitar a volta do quinquênio, por ser imoral, custoso e anacrônico. Os juízes já estão na elite do funcionalismo, têm direito a dois meses de férias (pagos em dinheiro se desejarem) e a todo tipo de auxílio. Em contraste, as finanças públicas padecem de desequilíbrio crônico. São urgentes medidas estruturais de ajuste fiscal. Manter os privilégios de categorias no Judiciário só faz aumentar o custo do ajuste necessário, invariavelmente pago pelo resto da população.

Transição demográfica impõe desafio ao recrutamento de novos soldados

O Globo

Maiores Exércitos do mundo estão aquém da necessidade de pessoal em momento de conflitos mais intensos

A queda no crescimento populacional não preocupa apenas demógrafos e economistas. Já afeta há algum tempo as Forças Armadas das grandes potências, que não têm conseguido renovar suas tropas com jovens recrutas. Depois da Guerra do Golfo, em 1991, houve uma suposição generalizada de que a tecnologia permitiria substituir grandes contingentes de soldados por poucos militares altamente treinados, capazes de operar armas de alta precisão. A guerra na Ucrânia, porém, tem forçado a reavaliação dessa premissa, diz Stephen Biddle, historiador militar e especialista em política de defesa do Council of Foreign Relations, de Nova York. A alta mortalidade num conflito que já dura três anos põe em xeque esse modelo de guerra — não por acaso, a Rússia buscou tropas na aliada Coreia do Norte. A tecnologia de precisão já se mostrou insuficiente em conflitos mais curtos.

Em contexto de crescente tensão geopolítica, com aumento estimado em 65% no número de choques armados nos últimos três anos, de acordo com o Índice de Intensidade de Conflito, da consultoria britânica Verisk Maplecroft, os orçamentos militares cresceram, mas esbarram na falta de soldados para lutar. No ano passado, a Alemanha gastou US$ 63,7 bilhões com Defesa, um recorde, segundo o Instituto Internacional de Estudos Estratégicos (IISS), de Londres. Para este ano, espera-se que destine US$ 76,8 bilhões, atingindo pela primeira vez os 2% do PIB em despesas com as Forças Armadas estabelecidos como piso pela Otan. A Alemanha também tem a meta de contar com 203 mil militares até 2031. Mas não será fácil, se considerarmos que, no ano passado, o contingente alemão perdeu 1.500 militares. A tropa tem hoje 181,5 mil homens e mulheres.

Nas Forças Armadas do Reino Unido, faltaram 5.800 soldados no ano passado. O jornal especializado UK Defence revelou que o país não atinge as metas de recrutamento desde 2010. Os Estados Unidos, maior potência militar do mundo, também enfrentam dificuldades devido à demografia. Há pelo menos dois anos, as Forças Armadas americanas têm problemas no recrutamento. Em 2022, a meta era recrutar 60 mil. Faltaram 15 mil. A força do Exército regular americano, de 452 mil homens e mulheres, é “a menor desde antes da Segunda Guerra", segundo artigo publicado em janeiro pelo tenente-coronel Frank Dolberry e por Charles McEnany, analista de segurança nacional do Exército americano.

China, que tem a segunda maior população mundial, passa pela mesma dificuldade. Em raro gesto de transparência, o Exército chinês admitiu no ano passado que faltavam militares capazes de manejar armamentos de última geração. Num relatório divulgado pelo South China Morning Post, o porta-voz do Exército mencionou a falta de pessoal preparado para servir nos navios comissionados para renovar a frota da Marinha. Mesmo que se considere que a carreira militar não seduz jovens como no passado, a demografia se mostra um inimigo difícil de bater.

Pacote inepto de Lula eleva patamar dos juros

Folha de S. Paulo

Banco Central precisará endurecer política monetária para conter inflação; Congresso terá de agir com responsabilidade

Para qualquer pessoa com alguma noção da realidade, era totalmente previsível que resultaria em desastre financeiro a atitude do governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT) de divulgar um pacote pífio de controle de gastos associado a uma promessa vistosa de redução do Imposto de Renda.

Em apenas dois dias, os juros de mercado saltaram mais de 1 ponto percentual, e as expectativas já incorporam que a taxa Selic, do Banco Central, poderá superar 14,5% ao ano nos próximos meses. A irresponsabilidade de Lula alimentou a ameaça de disparada da dívida pública, em vez de contê-la, o que afetará todos os brasileiros.

Diante da descarada recusa do governo em realizar um ajuste sério, a cotação do dólar chegou a atingir R$ 6,10 na sexta (29), novo recorde de desprestígio da moeda nacional. O resultado é óbvio: mais lenha na fogueira da inflação, cujas chamas já vinham crescendo pela pressão de gastos públicos excessivos.

Já não se dúvida que o IPCA supere 5% em 2025, 2 pontos percentuais acima da meta do BC. Assim se encarecem matérias-primas, alimentos e bens intermediários essenciais para a produção e o transporte de artigos de primeira necessidade.

O cenário de descontrole fiscal dificulta a tarefa do Banco Central de estabilizar os preços, a ponto de torná-la impossível sem elevação de juros já exorbitantes. Longe de conjecturas apenas teóricas, trata-se de um golpe direto nos mais pobres, que são os grandes prejudicados.

O aperto das condições financeiras reverbera imediatamente no custo de financiamento de famílias e empresas. O torniquete do endividamento sufoca o setor produtivo e destrói intenções de investimentos e possibilidades de consumo das famílias.

É verdade que a economia do país ainda crescerá 3% ou mais neste ano, e o desemprego está baixo. Esse quadro é frágil, porém, pois se ancora em gastos federais insustentáveis, quando o necessário seria criar condições duradouras para juros baixos.

Está sendo contratada uma desaceleração da atividade que cedo ou tarde atingirá o emprego e piorará os indicadores sociais. A esta altura já não há dúvida de que o presidente da República e seu partido não têm uma compreensão clara da emergência em que colocaram o país.

Resta ao ministro Fernando Haddad, da Fazenda, fazer o discurso da sensatez, que tem cada vez menos credibilidade. Culpar o governo passado, ademais, pode açular a militância petista, mas em nada aumenta a confiança numa gestão que desdenha da solvência das contas públicas.

Não há mais motivos para esperar algum lampejo de lucidez de Lula —que nem se preocupa em fingir alguma responsabilidade orçamentária. Resta esperar que lideranças do Congresso, em nome do pragmatismo, examinem as propostas a serem apresentadas com a responsabilidade ausente no Palácio do Planalto.

Mais leitores para um futuro melhor

Folha de S. Paulo

Taxa de brasileiros que não têm hábito de ler supera a dos que têm; governos precisam facilitar e estimular a leitura

Menos brasileiros leem livros hoje, seja em suporte digital ou impresso, do que há cinco anos. É o que revela a pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, do Instituto Pró-Livro, o mais amplo mapeamento sobre essa atividade no país, realizado desde 2007.

Pela primeira vez na série histórica, a taxa de não leitores superou a de leitores: 53% contra 47%. Em 2019, a parcela dos que costumam ler era de 52%.

Isso mesmo com o amplo critério para definir hábito de leitura. Quem leu parte de um livro nos últimos três meses, como um trecho da Bíblia, já entra na conta.

A queda absoluta entre as pessoas que afirmam ter o costume de ler, em um país no qual elas historicamente nunca vicejaram, impressiona: o Brasil perdeu mais de 11 milhões de leitores nos últimos nove anos.

Trata-se de uma crise que atinge quase todas as faixas etárias. No entanto ela é particularmente crítica na de 5 a 10 anos, período que compreende uma fase essencial de alfabetização.

A redução nesse estrato foi de nove pontos percentuais nos últimos cinco anos. O dado é temerário porque indica que essas crianças deixaram de ler livros nas escolas, já que obras didáticas e paradidáticas também são contabilizadas na pesquisa.

O índice reflete descaso de governos nas três esferas. Como a Folha revelou em setembro, obras literárias que deveriam ter sido compradas para abastecer escolas em 2022, na gestão de Jair Bolsonaro (PL), ainda não haviam sido nem contratadas pelo Ministério da Educação de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), em seus quase dois anos de mandato.

A prefeitura de Ricardo Nunes (MDB), em São Paulo, também atrasou seu programa de distribuição de exemplares na cidade mais populosa e rica do país.

Enquanto o fomento ao livro engatinha, outras práticas galopam para dominar as atenções do potencial leitorado.

Entre as atividades com que os entrevistados declararam ocupar seu tempo livre, o uso da internet saltou de 47% para 78% entre 2015 e 2024. No mesmo período, o uso de WhatsApp ou Telegram subiu de 43% para 71%, e o de redes sociais, de 35% para 49%.

O hábito da leitura não é panaceia, mas são consensuais seus benefícios para a cognição, a criatividade e a expressão de ideias.

Num país que precisa desenvolver sua economia, incrementar índices educacionais e cultivar um nível saudável de debate público, governos têm o dever de facilitar o acesso a livros e incentivar a leitura, principalmente na infância e adolescência.

É hora de uma nova direita

O Estado de S. Paulo

Contaminado pela inelegibilidade, pelo indiciamento e pela fadiga do seu reacionarismo, Bolsonaro vê hoje o fortalecimento de alternativas ao seu nome na direita. Boa notícia para o País

Se ainda tentava encontrar meios de dar prova de vida enquanto sonhava com uma anistia que lhe devolvesse as credenciais políticas e eleitorais, o ex-presidente Jair Bolsonaro teve suas chances drasticamente reduzidas com a nova condição de indiciado. Embora sejam incertos os desdobramentos do indiciamento apresentado pela Polícia Federal – dele e de outras 36 pessoas do seu entorno pelo envolvimento numa suposta tentativa de golpe de Estado destinado a impedir a posse do presidente Lula da Silva –, há pelo menos uma certeza: o flagrante enfraquecimento político de Bolsonaro.

Os bolsonaristas mais fiéis costumam usar o exemplo de Lula da Silva – que cumpria pena de prisão por corrupção, de lá saiu em razão de questões processuais, ganhou a eleição e hoje é novamente presidente – para alimentar a esperança de que Bolsonaro, uma vez favorecido por uma anistia que lhe permita disputar eleições, possa voltar ao poder nos braços do povo. Mas há uma diferença essencial entre os dois casos: Lula não tinha (como não tem) herdeiros evidentes à altura; já no caso de Bolsonaro há um congestionamento de candidatos razoavelmente viáveis para herdar seus eleitores. Os bolsonaristas, contudo, não entregam os pontos e, sobretudo os filhos do capitão, desautorizam de forma agressiva quem quer que ouse se apresentar como o líder do bolsonarismo sem Bolsonaro.

Mas a realidade parece cada vez mais contrariar a vontade dos devotos de Bolsonaro. É claro que, mesmo fora da cédula eleitoral na próxima disputa presidencial, o ex-presidente ainda é um portento eleitoral, mas é inegável que sua capacidade de ditar os rumos da direita se reduziu drasticamente – e a prova disso é que seus enroscos judiciais são cada vez mais um assunto da família Bolsonaro e cada vez menos um assunto do Centrão.

O fato, portanto, é que a direita está diante de dois caminhos possíveis: o bolsonarismo golpista de um lado; e o liberalismo e a democracia de outro. Alguns candidatos a substituir Bolsonaro ainda titubeiam entre um e outro, caso, por exemplo, do governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas. Ao comentar o indiciamento do ex-presidente, Tarcísio disse que a acusação “carece de provas” e que Bolsonaro “respeitou o resultado da eleição e a posse aconteceu em plena normalidade e respeito à democracia”. Ora, o inquérito corre sob sigilo, razão pela qual não é possível dizer se há provas ou não. E é escarnecer da inteligência alheia dizer que Bolsonaro respeitou o resultado da eleição, quando todos sabem que ele se recusou a passar a faixa a Lula e que seus seguidores tocaram o terror em Brasília nos dias imediatamente anteriores e posteriores à posse do petista. Sobrou desrespeito à democracia.

Se o governador Tarcísio hesita, este jornal não. Desde sempre, o Estadão deixou claro que o bolsonarismo é basicamente reacionarismo, um extremismo destrutivo e orgulhosamente delinquente, que prospera somente num ambiente de conflagração. É, portanto, a negação da direita liberal, que é democrática, sustenta-se nas ideias republicanas e pugna pela manutenção das instituições. Os candidatos a liderar essa direita precisam saber que ainda estão para nascer sociedades mais bem-sucedidas do que aquelas ancoradas em direitos e liberdades individuais e coletivos, em sistemas de freios e contrapesos, em democracias liberais que buscam uma alocação eficaz de recursos e meios de oferecer competividade e produtividade.

Não é improvável que vejamos esses dois caminhos bifurcados em 2026. Que tenhamos em 2026 uma direita que expresse o cansaço de parcela considerável do Brasil com o modo bolsonarista de fazer política – assim como é desejável, embora improvável, uma esquerda moderna, com visão atualizada dos problemas que o País precisa enfrentar. Hoje pagamos a conta tanto do modelo de implosão do sistema político e de agressividade e ataque às instituições que marcam o bolsonarismo quanto do pensamento rupestre na forma de gerir o Estado que marca o lulopetismo. Mas há uma boa notícia pelo menos em relação ao primeiro: a perda de vitalidade de Bolsonaro pode acelerar o processo de superação dessa fase tenebrosa da história brasileira.

O poste de Lula no Ministério da Fazenda

O Estado de S. Paulo

Esqualidez do pacote fiscal, anunciado como propaganda eleitoral, prova que Haddad é apenas o operador dos interesses eleitorais do presidente, sem poder para fazer o que precisa ser feito

Nos quase dois anos de governo de Lula da Silva, cultivou-se no mercado financeiro a expectativa quase mística de que o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, seria o guardião da sobriedade econômica ante o notório desprezo do lulopetismo pelo equilíbrio fiscal e pelo controle da inflação. Mas eis que veio o tão esperado anúncio do pacote de revisão de gastos do governo, e ficou claro que Haddad é apenas o poste de Lula no Ministério da Fazenda.

Acabou a ilusão de que Haddad poderia ser para Lula o que Fernando Henrique Cardoso foi para Itamar Franco, outro notório estatista que afinal se limitou a assinar as medidas necessárias para a efetivação do Plano Real. Se FHC conseguiu contornar o intervencionismo de Itamar (que, até as vésperas do Real, insistia em alguma forma de controle de preços), Haddad não conseguiu (e, em seu favor, diga-se que ninguém conseguiria) conter o ímpeto eleitoreiro de Lula, que determina todos e cada um de seus passos e de suas decisões.

No pronunciamento de Haddad, o verniz mais político do que deveria ser essencialmente econômico revelou, no fundo, não uma fortaleza similar a outros que, no passado, ocuparam a mesma cadeira e triunfaram politicamente, como Rodrigues Alves, Getúlio Vargas e FHC. Nem a robustez de homens notáveis que exerceram seu poder à frente da economia de forma quase inquestionável, como Rui Barbosa, Santiago Dantas, Delfim Netto e Mario Henrique Simonsen. O que se viu naqueles 7 minutos e 18 segundos de anúncio do pacote foi algo diferente: a fragilidade do ministro da Fazenda.

Parece um paradoxo, e é mesmo: um ministro convertido na face visível de um pacote anunciado em rede nacional como se fosse propaganda eleitoral, e ao mesmo tempo porta-voz do resultado de um extenuante esforço da equipe econômica, mas que adquiriu contornos populistas – com direito a slogan marqueteiro de consistência duvidosa (“Brasil mais forte, governo eficiente, país justo”). É puro Lula.

Era inquestionável, até aqui, o papel de Haddad como um dos poucos trunfos de responsabilidade entre os auxiliares de Lula. Mas seu calvário rumo ao anúncio demonstra o isolamento e o esmaecimento da equipe econômica e, sobretudo, a disputa entre forças políticas antagônicas no governo, na qual o ministro claramente foi derrotado. Em maio, quando o Orçamento de 2024 estava para ser enviado ao Congresso, o mesmo Haddad foi alvo de um ataque especulativo sobre sua autoridade. O chefe da Casa Civil, Rui Costa, tentava convencer Lula a desistir da meta de déficit zero para este ano, ponto de honra de Haddad. Deu-se um ataque articulado, que envolveu deputados petistas e declarações públicas da presidente do PT, Gleisi Hoffmann. A imprensa classificou as críticas ao plano do ministro da Fazenda como “fogo amigo”, mas o nome certo é motim. Ao fim, o projeto de Orçamento foi aprovado, mas o estrago estava feito.

De lá para cá, Haddad seguiu recebendo golpes abaixo da cintura, a ponto de um dos candidatos a substituir Gleisi Hoffmann na presidência do PT, o prefeito de Araraquara, Edinho Silva, vir a público alertar o óbvio: não há registro na história da existência de um governo forte com um ministro da Fazenda fraco. Silva mirou em Gleisi, mas esqueceu um personagem central, o chefe Lula da Silva.

Ninguém duvida que o modo lulista de governar requer bajuladores fiéis, estímulo aos conflitos internos (para triunfo único do líder máximo) e acenos contraditórios a públicos distintos, conforme as circunstâncias mais convenientes para si. Ocorre que Lula e o PT ignoram que ter um ministro da Fazenda confiável e com respaldo do chefe para exercer poder é imprescindível num país cuja economia vive em sobressalto. FHC demitiu amigos para preservar a autoridade de Pedro Malan na política econômica. Delfim era o homem forte de Emílio Médici. Simonsen, o de Ernesto Geisel. É essa sabedoria presidencial que permite ao País distinguir ministros da Fazenda dotados de instrumentos necessários para fazer o que é preciso daqueles que se convertem em meros operadores obedientes dos seus chefes.

Investida contra o aborto legal

O Estado de S. Paulo

Comissão da Câmara aprova PEC que na prática liquida um direito em vigor há 80 anos

A Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara aprovou uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) para inviabilizar o aborto legal no Brasil, um direito garantido às mulheres desde 1940. Apresentada em 2012 pelo então deputado Eduardo Cunha, hoje cassado, a iniciativa recebeu agora a chancela de 35 integrantes do colegiado mais importante da Casa. Apenas 15 parlamentares se posicionaram contra o texto.

A mudança sugerida por Cunha e apoiada pela relatora da PEC, a deputada bolsonarista Chris Tonietto (PL-RJ), pode parecer sutil. Mas a ideia, que consiste em incluir no trecho do artigo 5.º da Constituição que trata da “inviolabilidade do direito à vida” a expressão “desde a concepção” tem efeito substancial.

Na prática, o que se pretende é impedir o aborto em caso de estupro, risco de morte da mulher ou de gestação de anencéfalos, que foi autorizado pelo Supremo Tribunal Federal (STF). As duas primeiras hipóteses de interrupção de gravidez constam do Código Penal há mais de oito décadas. E a última foi liberada pela Corte Constitucional justamente no ano em que Cunha apresentou a PEC na Câmara.

Vê-se o intuito de demolir dois marcos civilizatórios. Mas há outros riscos. A iniciativa pode, por exemplo, dificultar a fertilização in vitro no País, haja vista que embriões são descartados nesse processo — em 2023, foram 110 mil, que, numa interpretação rígida do texto proposto, seriam todos considerados vítimas de homicídio. Além disso, a PEC põe em risco pesquisas com células-tronco, fundamentais para o avanço da ciência e da saúde.

Para tantos retrocessos, nem esforço argumentativo houve. Na apresentação da PEC, Cunha limitou-se a dizer que “a discussão acerca da inviolabilidade do direito à vida não pode excluir o momento do início da vida”. E sentenciou que “a vida não se inicia com o nascimento, e sim com a concepção”, ainda que essa questão esteja longe de ser pacífica na sociedade brasileira.

Embora haja mais perguntas filosóficas, científicas e jurídicas do que respostas sobre quando começa a vida, os deputados parecem cheios de certeza. Do contrário, Eli Borges (PL-TO), que já presidiu a Frente Parlamentar Evangélica, não a exporia de forma tão cristalina. Segundo ele, “dizem que não podemos trazer questões religiosas porque o Estado brasileiro é laico”, o que é um fato, “mas somos religiosos, sim, e a imensa maioria da população é conservadora”.

Há tempos a bancada bolsonarista tenta fazer avançar projetos com vista a acabar com as exceções que hoje permitem o aborto. Em junho, o plenário da Câmara aprovou a urgência de um projeto de lei para igualar o aborto acima de 22 semanas ao crime de homicídio. Com isso, o texto poderia ir direto a plenário, mas, diante da reação negativa da sociedade, a matéria foi para uma comissão, onde dormita. Espera-se que a PEC de Eduardo Cunha tenha destino semelhante, em nome da dignidade humana.

Altivez contra o neocolonialismo

Correio Braziliense

Está correta a postura do presidente Lula ao rebater as acusações irresponsáveis e demagógicas de políticos e empresas francesas contra o agro brasileiro

Já o deputado Antoine Vemorel, do Droite Republicaine, chegou a acusar o Mercosul - bloco formado por Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai - de utilizar produtos cancerígenos nas carnes que exporta para a Europa. - (crédito: Reprodução do portaldaindustria)

Está correta a postura do presidente Lula ao rebater as acusações irresponsáveis e demagógicas de políticos e empresas francesas contra o agro brasileiro. Como ressaltou o chefe do Planalto, é importante que o Brasil avance nas negociações entre Mercosul e União Europeia — sem deixar de responder a eventuais leviandades — e amplie a presença brasileira em mercados ascendentes, como Índia e China, que somam quase 30% da população global. 

O posicionamento do governo brasileiro vem no momento em que as tratativas entre o Mercosul e a União Europeia chegam a uma etapa decisiva. Em Brasília, a última semana foi marcada por extensas reuniões entre negociadores dos dois blocos econômicos a fim de dirimir ao máximo as pendências relativas ao acordo de livre comércio, em construção há mais de 20 anos. A intenção é avançar nas questões técnicas, passando para um nível superior, no qual se faz necessário o diálogo político.

Existe uma expectativa de que chefes de Estado sul-americanos anunciem resultados relevantes esta semana, na reunião de cúpula do Mercosul em Montevidéu. Em visita a Brasília, o presidente eleito do Uruguai, Yamandú Orsi, manifestou confiança nos trabalhos diplomáticos. "Somos otimistas, como Mercosul e como região, somos otimistas com a possibilidade de seguir estreitando laços com outras regiões, fundamentalmente com a Europa", disse. 

Como se vê, a busca pela concretização do acordo Mercosul-UE ocorre por meio negociação coletiva, não cabendo neste momento a resistência de um país-membro em particular — o que dirá de uma empresa. Na quarta-feira, ao se manifestar sobre o tema, Lula foi direto ao ponto. "Se os franceses não quiserem o acordo, eles não apitam mais nada, quem apita é a Comissão Europeia. A Ursula von der Leyen (presidente da Comissão Europeia) tem procuração para fazer o acordo, e eu pretendo assinar esse acordo este ano ainda", esclareceu.

Existem razões adicionais, de caráter geopolítico, para o Brasil avançar em acordos multilaterais de comércio exterior. Com a volta de Donald Trump à Casa Branca a partir de janeiro, é iminente uma ofensiva tarifária por parte dos Estados Unidos, com efeito sobre todos os países que mantêm comércio com a maior economia do mundo. Faz sentido, portanto, o governo brasileiro ampliar o leque de mercados interessados em adquirir produtos nacionais. 

Essa mesma estratégia se aplica no estreitamento diplomático com a China. A recente visita do presidente Xi Jinping ao Brasil, com a assinatura de  37 acordos comerciais e de cooperação, atende aos interesses dos dois países. Apenas no item exportação, a entrada de novos produtos, como farinha de peixe e gergelim, no mercado chinês tem potencial de US$ 450 milhões na balança comercial brasileira. 

Com pragmatismo e sem subserviência, o Brasil constrói condições para ganhar relevância na economia internacional. Nesse projeto, é fundamental o governo e o setor produtivo deixarem claro que não aceitam imposições que remetam ao colonialismo ou que causem danos, por meio de desinformação, à excelência do agronegócio.

Um comentário:

Anônimo disse...

A direita com a qual o Estadão sonha não existe, pelo menos não no Brasil. É uma visão utópica quando se constata a realidade da classe política brasileira.