sábado, 14 de dezembro de 2024

Distribuição de renda e justiça tributária - João Saboia*

Valor Econômico

Apesar de estar na direção correta de maior progressividade na estrutura tributária do país, a proposta de isenção de IR até R$ 5 mil, compensada pela taxa mínima de 10% para os mais ricos, criou uma oposição desnecessária

O Brasil é famoso por possuir uma das piores distribuições de renda do mundo. Trata-se de um problema antigo cujas origens remontam a seu passado colonial e escravagista. No passado recente houve períodos mais favoráveis e outros menos, em termos de redistribuição da renda da população.

Há vários mecanismos que podem ser utilizados para minorar o problema. Talvez a mais conhecida do público em geral seja por meio de transferências de recursos diretamente à população, como no Bolsa Família e no Benefício de Prestação Continuada (BPC). Outras se refletem indiretamente, como no ensino público gratuito e na assistência à saúde por meio do Sistema Único de Saúde (SUS).

Uma forma importante de redistribuição, algumas vezes colocada em segundo plano, é por meio da política tributária do país, que tem grande potencial na redução das desigualdades de renda. O Brasil também é conhecido pelas distorções em sua estrutura tributária baseada em grande parte em impostos indiretos, que incidem sobre toda a população. Como as pessoas mais pobres consomem uma parcela maior de sua renda do que as mais ricas, são eles que acabam pagando proporcionalmente mais impostos indiretos. Essa distorção pode ser corrigida por meio de uma política tributária que utilize impostos diretos associados ao nível de renda de cada um. Para isso existe o imposto de renda.

Uma das maiores críticas feitas ao recente pacote de redução dos gastos do governo foi a inclusão da isenção do imposto de renda para as pessoas com rendimento de até R$ 5 mil mensais. Um dos argumentos contra a medida é o fato de que o mercado esperava redução de gastos e não de receitas. Concordamos que esse não era o melhor momento para tal tipo de medida do governo, mas é preciso não esquecer que se trata de uma promessa do presidente Lula no calor da campanha eleitoral, que em algum momento o governo poderia tentar implementar.

Segundo afirmação do ministro Fernando Haddad, confirmada por estudos independentes que vêm sendo desenvolvidos desde o anúncio da medida, tal redução do imposto de renda seria compensada pela elevação do imposto para o pessoal no topo da pirâmide. Simulações realizadas na USP e divulgadas no Valor (03/12) mostram que a queda do imposto de renda na base da pirâmide de rendimentos seria compensada pelo aumento da arrecadação obtida com a alíquota mínima de 10% para o pessoal no topo dos rendimentos. Não haveria, portanto, nem redução nem aumento de receitas.

Um outro ponto importante da proposta do governo que precisa ficar bem claro é que a redução do imposto de renda está voltada para a classe média e não para os mais pobres, que já estão isentos do imposto de renda. Para estes há outros mecanismos de transferência de renda como os mencionados acima.

O estudo da USP, realizado por Guilherme Klein, João Pedro de Freitas Gomes e Guilherme Arthen, fornece várias informações que esclarecem bastante o efeito redistributivo da proposta governamental. Ao se ordenar a população pelo rendimento segundo seus percentis nota-se que, segundo a atual legislação, a taxa efetiva paga pelos contribuintes cresce até o 99º percentil quando atinge 12,5% da renda, caindo bastante no último percentil (3,5% para o pessoal no 0,1% do topo).

Ainda segundo a simulação dos autores, atualmente quem está localizado até 79º percentil de rendimentos não paga imposto de renda e com as mudanças propostas haveria isenção do imposto de renda até o 93º percentil. A partir daí, as alíquotas se elevariam rapidamente até atingir valores semelhantes aos atuais no 99º percentil. Apenas o último percentil seria atingido pela nova alíquota de 10%. Em números absolutos, cerca de 23 milhões de pessoas seriam beneficiadas enquanto pouco menos de 600 mil teriam aumento da carga tributária. Em termos distributivos haveria uma pequena melhora confirmada pela redução no índice de Gini.

Algumas conclusões podem ser tiradas a partir da análise das simulações efetuadas pelos pesquisadores da USP. A primeira delas, já foi mencionada acima, confirma sua neutralidade em termos arrecadatórios, já que a perda na base seria praticamente compensada pelo aumento no topo. A segunda é que o benefício da nova proposta está voltado para uma ampla faixa da classe média. A terceira é que o aumento da arrecadação estaria integralmente concentrado no 1% do topo da distribuição de rendimentos, que atualmente é beneficiado por uma série de isenções, pagando relativamente pouco imposto de renda.

Apesar da concentração nos mais ricos, a nova estrutura do imposto de renda não seria perfeitamente progressiva, na medida em que tais contribuintes ainda estariam pagando percentualmente menos impostos que os imediatamente abaixo no nível de rendimentos (10% contra 12,5%). Segundo os autores do estudo, para que a estrutura do imposto de renda fosse perfeitamente progressiva, revertendo a atual regressividade no topo da distribuição, seria necessária uma taxa mínima de 15% e não de 10% como proposta pelo governo.

O mercado reagiu muito mal ao novo pacote de redução dos gastos do governo. Segundo o que tem sido veiculado na imprensa, eram esperadas medidas mais contundentes em relação ao salário mínimo, ao BPC, ao abono salarial, à desvinculação dos gastos com educação e saúde entre outros gastos sociais. Se era nisso que o mercado acreditava, me parece que tais expectativas seriam um tanto irrealistas tendo em vista o viés social do governo Lula.

Com relação especificamente à proposta de isenção do imposto de renda até R$ 5 mil, compensada pela taxa mínima de 10% para os mais ricos, apesar de estar na direção correta de maior progressividade na estrutura tributária do país, criou uma oposição desnecessária. Me parece que teria sido muito mais hábil da parte do governo ter simplesmente reajustado a atual tabela do imposto de renda que se encontra defasada há vários anos. Seria difícil haver críticas a tal medida que vem sendo reivindicada há muito tempo pelos contribuintes. A taxa mínima de 10% no topo é uma boa ideia que deveria ser mantida. Ao insistir na promessa de campanha neste momento, o governo criou uma oposição desnecessária.

*João Saboia é professor emérito do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

3 comentários:

Mais um amador disse...

Perfeito !

Mais um amador disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Anônimo disse...

Excelente análise, texto perfeito! Obviamente não agrada aos agentes do mercado financeiro e nem aos colunistas que papagaiam as mensagens que recebem dos seus patrões do mercado.