sábado, 14 de dezembro de 2024

Parece, mas não é! - Luiz Gonzaga Belluzzo e Manfred Back

CartaCapital

No mundo dos homens e das mulheres, são as funções que determinam as peripécias do dinheiro, não o contrário

Nos anos 1980, a propaganda do xampu anticaspa ­Denorex, era divulgada com o bordão: Parece, mas não é!

Desde sempre, a dita Ciência Econômica convive com dogmas Denorex, parece, mas não é! A doutrina econômica Denorex ensina que o dinheiro é apenas uma unidade de conta e meio de pagamento. Em nossa infância, nos bons tempos dos gibis, o Tio Patinhas mergulhava em um cofre cheio de moedas. Patinhas, o tio, entesourava dinheiro sob o manto concreto da grana viva para realizar a função reserva de valor. No mundo dos homens e das mulheres são as funções que determinam as peripécias do dinheiro, não o contrário. Os conceitos (abstratos) definem o concreto.

Em uma manhã de sexta-feira, ­Manfred sorvia os benefícios do coffee break, no Workshop “Novo Desenvolvimento Econômico”, na Fundação Getulio Vargas de São Paulo. Um economista aproximou-se e perguntou: “Por que chamam derivativo?” Manfred respondeu: “Porque derivam de alguma coisa que tenha seu valor expresso sob a forma monetária, também conhecida pela alcunha ‘preço’. Está vendo esse copo na minha mão? Posso criar um contrato futuro de copo de papel”. Ele: “Como?” Manfred: “Basta o mercado de compra e venda de copos de papel”. Ele: “Então, você compra a termo?” Manfred: “Não!” Ele: “Então, o que é um derivativo?” Manfred: “Um direito de comprar ou vender a variação de preço num prazo determinado. Não se trata de comprar ou vender um ativo ou 1 tonelada de soja. Aposto na diferença de preço entre a data de abertura do contrato e seu encerramento à frente!”

— Os chamados derivativos são, na verdade, instrumentos de repartição de risco. A sua existência sob forma padronizada, em mercados específicos, amplia as possibilidades de hedge dos agentes. Mas, como é óbvio, esses instrumentos apenas repartem, mas não eliminam o risco. É notório que os instrumentos transacionados nos mercados de futuros não podem neutralizar o chamado risco sistêmico, sobretudo quando irrompe uma flutuação pronunciada e não antecipada nos preços dos ativos subjacentes, mesmo que as regras prudenciais, as garantias e chamadas de margem, determinadas pelos administradores dos mercados de futuros, venham sendo impostas e executadas adequadamente.

Os Bancos Centrais e demais autoridades reguladoras estão, portanto, diante da intensificação da concorrência nos mercados financeiros, promotora de uma rápida transformação das práticas de intermediação, dos métodos de avaliação de ativos e dos riscos associados, bem como de uma alteração da hierarquia e do papel das instituições.

Nesse instante, Manfred topa com um grande especialista e professor de Macroeconomia. Ousou perguntar ao sábio da Crematística: como explicar aos seus alunos que câmbio e juros subiram junto na semana passada, se a teo­ria Denorex diz que essa relação é inversa? Arregala os olhos, reflete alguns segundos e diz: “Tem razão”. Manfred faz outra pergunta: “Você acha que o Banco Central tem capacidade de fixar sua taxa real de juros, sem olhar o diferencial com a taxa americana? A tal da arbitragem? O pessoal Denorex dos modelos de equilíbrio diz que não existe arbitragem de taxa de juros, e basta fixar a taxa neutra, não tem moeda e tempo”. Ele: “Lógico que não. Parece, mas não é!”

Tais modelos não lidam com o tempo, com dinheiro, com incertezas, com o financiamento dos direitos de propriedade sobre bens de capital e com investimentos (Minsky).

É notório que os instrumentos transacionados nos mercados de futuros não podem neutralizar o chamado risco sistêmico

Manfred encontra um ex-aluno no metrô, na Estação Faria Lima, e ele conta que trabalha na mesa de operação de uma gestora independente com 36 bilhões de reais em ativos. Num tom irônico, ele indaga: “Esses influenciadores nas redes sociais geram pânico ao mencionar o calote da dívida pública?”

Ele mesmo respondeu à sua própria indagação: “Nós, aqui, alocamos 70% dos fundos de renda fixa em títulos públicos federais, as NTNs e LFTs, liquidez diária e garantia de recompra pelo Tesouro”.

A resposta do operador relembrou as ironias de Machado de Assis no conto Anedota Pecuniária. Ironias carregadas de amarguras despejadas nos espíritos apaixonados pelo dinheiro e apenas por ele.

Ainda nos tempos da escravidão, um ano antes da Lei do Ventre Livre, os traficantes de escravos engordavam seus cabedais e se entregavam aos negócios do dinheiro. Machado desvela as angústias de Falcão. O personagem, ademais de traficar escravos, resolveu negociar as próprias sobrinhas que herdou da irmã falecida:

“Chama-se Falcão o meu homem. Naquele dia – 14 de abril de 1870 –, quem lhe entrasse em casa às 10 horas da noite, vê-lo-ia passear na sala, em mangas de camisa, calça preta e gravata branca, resmungando, gesticulando, suspirando, evidentemente aflito. Às vezes, sentava-se; outras, encostava-se à janela, olhando para a praia, que era a da Gamboa. Mas, em qualquer lugar ou atitude, demorava-se pouco tempo.

“Fiz mal – dizia ele, muito mal. Tão minha amiga que ela era! Tão amorosa! Ia chorando, coitadinha! Fiz mal, muito mal… Ao menos, que seja feliz!

“Se eu disser que este homem vendeu uma sobrinha, não me hão de crer; se descer a definir o preço, 10 contos de réis, voltar-me-ão as costas com desprezo e indignação. Entretanto, basta ver este olhar felino, estes dous beiços, mestres de cálculo, que, ainda fechados, parecem estar contando alguma cousa, para adivinhar logo que a feição capital do nosso homem é a voracidade do lucro. Entendamo-nos: ele faz arte pela arte, não ama o dinheiro pelo que ele pode dar, mas pelo que é em si mesmo! Ninguém lhe vá falar dos regalos da vida. Não tem cama fofa, nem mesa fina, nem carruagem, nem comenda. Não se ganha dinheiro para esbanjá-lo, dizia ele. Vive de migalhas; tudo o que amontoa é para a contemplação. Vai muitas vezes à burra, que está na alcova de dormir, com o único fim de fartar os olhos nos rolos de ouro e maços de títulos. Outras vezes, por um requinte de erotismo pecuniá­rio, contempla-os só de memória. Neste particular, tudo o que eu pudesse dizer ficaria abaixo de uma palavra dele mesmo, em 1857. Era assim que ele amava o dinheiro, até à contemplação desinteressada.”

Parece, mas não é! 

Publicado na edição n° 1341 de CartaCapital, em 18 de dezembro de 2024.

 

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