Revista Veja
Muitos brasileiros não conseguem ler o que
nela vai escrito
Em 19 de novembro de 1889, os republicanos adotaram uma nova bandeira, para substituir a anterior, do período imperial. Contudo, 85% dos brasileiros, 12 milhões entre 14 milhões, não conseguiam ler o lema —Ordem e Progresso —por serem analfabetos. Começou, ali, a saga de uma nação partida, separando a maioria, o povão, da minoria privilegiada, a elite. Pouco mais de 135 anos depois, o estandarte é reconhecido por 93% da população —contudo, os 7% com mais de 15 anos iletrados não a reconhecem, em um grupo, 12 milhões, de tamanho semelhante ao dos apartados de 1889. É possível estimar que, ao longo da gestão dos 39 presidentes da história republicana, pelo menos 50 milhões de pessoas tenham morrido sem decifrar o lábaro.
Não é uma estimativa perfeita, tanto quanto
não são os cálculos do número de escravos que nasceram no Brasil ao longo dos
350 anos de escravidão, até a Lei do Ventre Livre. É claro indício, contudo, da
essência perversa de nosso sistema político. Nossos democratas lutaram por anos
contra a censura sobre os que tinham chance de escrever ou ler, mas não contra
a mais absoluta censura sobre os analfabetos; tampouco lutaram por aqueles
impedidos de receber educação de base suficiente para induzi-los à leitura, apesar
de alfabetizados. Os defensores das letras denunciam o alto custo dos livros e
o pouco apoio público à leitura, mas esquecem os analfabetos adultos e as
vítimas da baixa qualidade do sistema educacional, que continua produzindo a
cada ano dezenas de milhões de iletrados. Até mesmo a luta contra a tortura
sobre presos políticos não considerou que o analfabetismo é uma tortura sobre o
analfabeto: diante de um texto escrito, é como se levasse uma chicotada no
cérebro. A comemorada Lei da Anistia ainda não se aplicou às vítimas do
analfabetismo que são jogadas ao mar da “desescola” e ficam socialmente para
trás, por falta de acesso à educação de base com qualidade.
“Ao longo da gestão de 39 presidentes da
República, mais de 50 milhões de pessoas morreram analfabetas”
Um século e meio
depois da Proclamação da República prevalece a mesma essência política dos
primeiros republicanos que formularam a bandeira dos letrados sem cuidar dos
iletrados nem dos ileitores. No Dia da Bandeira do 24º ano do século XXI, o
Brasil tomou conhecimento de que diminuiu o número de leitores entre os
brasileiros alfabetizados. Diversas vozes se levantaram contra as causas dessa
tragédia social. Criticaram o descuido com o programa do livro didático, o
fechamento de livrarias, a penúria de bibliotecas, o alto preço dos livros, mas
sem cobrança por um programa para a erradicação do analfabetismo de adultos,
nem pela criação de um sistema nacional para a educação de base que produza
leitores.
Os republicanos fizeram uma bandeira para
poucos e, de modo triste e inaceitável, até hoje a desfraldamos para poucos
devido a um regime educacional com qualidade para privilegiados, apenas. A
consequência é um círculo vicioso: a essência perversa da política impede
educação de qualidade para todos, e essa apartação educacional faz duradoura a
perversidade social iniciada em 19 de novembro de 1889 com a adoção da bandeira
de uma república partida ao meio. Tudo somado: a verdadeira bandeira de um país
republicano é a escola que seus governos oferecem ao seu povo.
Publicado em VEJA de 13 de dezembro de
2024, edição nº
2923
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