sábado, 14 de dezembro de 2024

A vitória de Trump sobre o Estado de Direito - Antara Haldar*

Valor Econômico

Com controle republicano do Congresso e da Suprema Corte, o presidente eleito deve ser ainda mais belicoso em seu segundo mandato

Kamala Harris não foi a única a sofrer uma derrota decisiva nas eleições presidenciais americanas de 2024. Foi também uma derrota na “batalha pela alma” do Estado de Direito - instituição que define a democracia americana há quase 250 anos. A ilustração pungente desse fato foi o pedido do advogado especial Jack Smith para que o Departamento de Justiça desistisse de processar o presidente eleito Donald Trump.

A vitória de Trump livra-o da sua tentativa de anular as eleições presidenciais de 2020. Muito provavelmente, ele também escapará da responsabilidade legal nos outros processos contra ele movidos nos Estados da Flórida, Geórgia e Nova York.

Pior ainda, o ataque de Trump ao Estado de Direito está só começando. Ele é um conflito de interesses ambulante que não abriu mão de nenhuma de suas participações financeiras. Clamou pelo “fim” da Constituição, brincou com suas aspirações ditatoriais, elogiou líderes autoritários como o presidente russo, Vladimir Putin, e ameaçou atacar jornalistas e “prender” seus opositores políticos.

Tendo encenado o “maior retorno político” e com seus aliados firmemente no controle de ambas as câmaras do Congresso e da Suprema Corte, é provável que Trump seja ainda mais belicoso em seu segundo mandato. Inspirando-se no projeto ultraconservador da Fundação Heritage, o Projeto 2025, ele está escolhendo fiéis que partilhem de seu desprezo pelo Estado de Direito para liderar as principais agências de aplicação da lei, como o FBI, e prometeu deportações em massa e “proibições de viagens” discriminatórias.

Defensores do Estado de Direito têm de reconhecer que a lei corre o risco de se tornar uma concha oca e a sua esterilidade um terreno fértil para o populismo. Ele deve restaurar a fé das pessoas, tornando-se um símbolo de justiça e baseando seu apelo na moralidade

Desde o escândalo de Watergate, a maioria dos presidentes dos EUA tem voluntariamente demonstrado alguma contenção no exercício dos seus poderes, particularmente em relação ao Departamento de Justiça, que espera-se que funcione afastado da política de Washington. Mas Trump não tem qualquer respeito por essas normas ou tradições e “testar os limites” é seu cartão de visitas.

Juristas e cientistas políticos têm jogado com o sistema de pesos e contrapesos dos Estados Unidos em antecipação de uma segunda presidência de Trump, e as perspectivas não são boas. Como explica Barton Gellman, do Centro Brennan para a Justiça, “os jogos demonstraram repetidamente que um autoritário no controle do poder Executivo, com pouca preocupação com os limites legais, detém uma vantagem estrutural sobre qualquer esforço legal para o restringir”.

O risco só aumentou após a decisão histórica da Suprema Corte dos EUA no caso Trump contra os Estados Unidos, em que a maioria conservadora concedeu ao presidente “imunidade presuntiva de acusação em todos os seus atos oficiais”. Entretanto, o poder de perdão presidencial é mais abrangente do que nunca, e ferramentas como a Lei da Insurreição, que permite ao presidente o uso interno das Forças Armadas para vários fins vagamente definidos, estarão à sua disposição.

Trump já fez troça de todas as tentativas legais para contê-lo. Sua condenação no processo de “dinheiro de cala-boca” em Nova York foi um impulso para sua popularidade - e para seus cofres de campanha. Os republicanos se mantiveram fiéis ao seu líder ungido e alguns até apareceram no julgamento para lhe oferecer seu apoio. Enquanto Harris e os democratas enfatizaram a ameaça que Trump representa para o Estado de Direito, muitos eleitores simpatizaram com Trump, que acusou o governo Biden de travar uma “guerra legal” contra ele.

O fracasso da lei em responsabilizar Trump reaviva um debate antigo, que tem se desenrolado tanto em abstrato como em contextos específicos, desde a legislação nazista e a escravatura até o regime do apartheid sul-africano, sobre quando é que as leis “más” ou “perversas” deixam de ser válidas. A escola de pensamento dominante na teoria jurídica - o positivismo, iniciado por pensadores como Jeremy Bentham, Hans Kelsen e HLA Hart - defende que “o direito é o direito” como uma questão de fato social. De acordo com esta “tese da separação”, a validade da lei não tem nada a ver com moralidade e exige apenas que os funcionários a aceitem (adotem o “ponto de vista interno”) e que seja obedecida em linhas gerais. Ao fazê-lo, correm o risco de legitimar regimes em que o poder tem razão.

O trabalho de Gustav Radbruch, filósofo alemão relativamente esotérico, pode ser mais relevante para este momento. A Fórmula de Radbruch afirma que “(o) conflito entre justiça e segurança jurídica pode muito bem ser resolvido desta forma: O direito positivo, assegurado pela legislação e pelo poder, tem precedência mesmo quando seu conteúdo é injusto e não beneficia o povo, a não ser que o conflito entre a lei e a justiça atinja um grau tão intolerável (destaque meu) que a lei, como ‘lei defeituosa’, tenha de ceder à justiça”.

Radbruch, que no início tinha inclinações positivistas, desenvolveu esta fórmula como reação ao fato de ver os nazistas chegarem ao poder na Alemanha por meios legais. Segundo ele, “o positivismo, com o seu princípio de que ‘uma lei é uma lei’, tornou de fato a profissão jurídica alemã indefesa contra estatutos arbitrários e criminosos”. A ressonância histórica aqui é difícil de ignorar. O regime do Estado de direito americano encontrou seu par em Trump; de fato, sua própria popularidade parece dever algo à desconfiança do público em relação a ele.

Para que o Estado de Direito tenha chance de lutar, seus defensores têm de reconhecer que a lei corre o risco de se tornar uma concha oca e a sua esterilidade um terreno fértil para o populismo combativo. O Estado de Direito deve restaurar a fé das pessoas, tornando-se um símbolo de justiça e baseando seu apelo na moralidade e num significado partilhado. Como o próprio preâmbulo da Constituição dos Estados Unidos implica, a busca de uma “União mais perfeita” está inextricavelmente ligada ao esforço de “estabelecer a Justiça”. Mas, para ter sucesso, o Estado de Direito terá de descobrir uma alma. (Tradução de Fabrício Calado Moreira)

*Antara Haldar, professora associada de Estudos Jurídicos Empíricos na Universidade de Cambridge, é membro convidado da Universidade de Harvard e pesquisadora principal de uma bolsa do Conselho Europeu de Investigação sobre direito e cognição.

 

5 comentários:

Anônimo disse...

Tão preocupado com a demora nos EUA
E a ditadura do STF/ PT aqui no Brasil?

Anônimo disse...

Democracia nos EUA

Anônimo disse...

Centenas de presos políticos sem processos legais
Mais de 200 exilados só na Argentina, a maioria passando necessidades
Jornalistas exilados nos EUA
Estamos vivendo uma realidade semelhante a 64 na ditadura militar

Anônimo disse...

Excelente texto, análise perfeita! Trump é a maior ameaça à Democracia dos EUA! E ao próprio país, pois um mentiroso maluco decidirá as coisas mais perigosas e importantes por lá, e certamente influenciando o mundo inteiro.

Anônimo disse...

Qual a solução???? Falar que é o partido democrata fazer boas gestões e proibir o Partido Republicano de existir, e caso insista de existir, proibir as pessoas de ter livre arbítrio pra votar neles, ah sim, esqueci, aí a turma da "democracia" mostraria a verdadeira face, e terão que parar de fazer textos hipócritas cheias de mentira ras.....