Regras para abordagem policial são bem-vindas
Decreto do governo faz bem ao impor
treinamento e normas sensatas, mas não pode imobilizar ação da polícia
Abordagens policiais precisam seguir regras
sensatas. Nas últimas semanas, o país tem assistido a episódios que expuseram
abusos, excessos, imperícia ou, no mínimo, despreparo dos agentes da lei diante
da missão de proteger cidadãos inocentes e desarmados. No caso mais recente,
uma jovem de 26 anos foi baleada na cabeça durante abordagem de policiais
rodoviários quando ia com a família para a ceia de Natal.
No mesmo dia, o Ministério da Justiça e Segurança Pública publicara decreto estabelecendo regras para abordagens policiais. Entre as principais diretrizes, ele determina que os agentes só poderão recorrer à força “quando outros recursos de menor intensidade não forem suficientes”. A arma de fogo deverá ser o “último recurso” e não poderá ser usada contra quem estiver desarmado, mesmo que em fuga, ou contra veículos que desrespeitem bloqueios. O decreto estipula ainda que o nível da força deve ser compatível com a ameaça. Está previsto que o governo oferecerá capacitação a profissionais de segurança. Todos deverão participar de treinamento obrigatório. O Ministério da Justiça criará um Comitê Nacional de Monitoramento do Uso da Força, responsável por acompanhar os indicadores em ações policiais.
A véspera das festas de fim de ano pode não
ter sido o momento oportuno para publicar o decreto. E, tratando-se de medidas
que envolvem o tema sensível da segurança pública, tarefa constitucional dos
estados, o assunto deveria ter sido discutido amplamente com governadores,
Congresso e sociedade. Mas a sucessão de episódios trágicos suscita um debate
maduro sobre os limites do uso da força. Tal discussão ainda pode ser feita em
detalhes, pois falta regulamentar o decreto.
É sensata a preocupação de governadores com o
engessamento do trabalho das polícias, num momento em que o país vive grave
crise de segurança. As regras do decreto federal não são compulsórias, mas
estados que recebem recursos dos fundos de segurança pública e penitenciário
precisarão segui-las, e isso na prática impõe a obrigação. O governador do Rio,
Cláudio Castro (PL), chamou-o de absurdo e prometeu recorrer ao Supremo
Tribunal Federal (STF) para barrá-lo. O governador de Goiás, Ronaldo Caiado
(União), afirmou que é um “presente de Natal” ao crime organizado. Na Câmara,
parlamentares da bancada da bala já se movimentam para sustá-lo. Sem consenso,
a tendência é a resistência aumentar. Assim como Castro culpa as restrições
impostas pelo STF às operações em favelas pelos índices de violência do
Rio, os governadores acabarão responsabilizando as novas regras por qualquer
piora na segurança.
É fundamental que o decreto não leve à inação
das polícias, que precisam ter autonomia no combate à violência. Mas é
essencial também que as abordagens aconteçam de forma a preservar inocentes. As
ações recentes ultrapassam em muito a lei e o bom senso. Jogar alguém do alto
de uma ponte ou atirar à queima-roupa contra um rapaz desarmado são atos que
deveriam, no mínimo, levar à reflexão sobre o treinamento dos agentes e os
métodos de abordagem. Não são casos esporádicos nem localizados, como atestam
os índices de letalidade policial. Não deveria haver contaminação política em
tal assunto. Ele é de natureza técnica e deve ser regido pelo bom senso. O
papel da polícia é proteger o cidadão, não atacá-lo.
Ano-Novo traz uma oportunidade para Congresso
pôr fim à farra das emendas
O Globo
Depois que Supremo suspendeu o pagamento de
R$ 4,2 bilhões, deputados decidiram reagir
Mostrando rara disposição de trabalhar no
recesso de fim de ano, as lideranças da Câmara foram convocadas ontem para uma
reunião sobre emendas parlamentares. O motivo foi a decisão do ministro Flávio Dino,
do Supremo Tribunal Federal (STF),
que suspendeu o pagamento de R$ 4,2 bilhões em emendas. Descrevendo um quadro
de “inconstitucionalidades em série”, com malas de dinheiro apreendidas em
aviões e maços de notas jogados pela janela, Dino condicionou a liberação ao
cumprimento da lei. Determinou ainda que a Polícia Federal (PF) investigue
denúncias de irregularidades feitas no próprio Congresso.
Dino bloqueou a execução dos pagamentos pela
primeira vez em agosto, em decisão referendada por unanimidade no plenário do
STF. Diferentes modalidades de emendas omitiam quem pedia verba, dificultando a
fiscalização. Nos casos mais escandalosos, o dinheiro era enviado ao caixa de
municípios sem nem especificar o destino da despesa (por meio das “emendas
Pix”). Menos transparente impossível. Depois de o Congresso aprovar projeto
alterando regras das emendas, Dino determinou a liberação mediante certas condições,
em nova decisão apoiada pelo plenário. Não foi o suficiente para os
parlamentares. No esforço de fim de ano, o Executivo se viu obrigado a baixar
uma portaria para satisfazer às demandas. Daí a nova reação de Dino.
Os motivos são compreensíveis. No início do
mês, a PF confirmou com evidências os temores em relação às emendas. Um
empresário conhecido na Bahia como “Rei do Lixo”, vinculado ao União Brasil,
foi detido em Brasília com R$ 1,5 milhão em espécie, além de planilhas sobre
dezenas de municípios suspeitos de desvios. Um dos investigados jogou pela
janela uma sacola com mais de R$ 200 mil quando policiais chegaram a sua casa.
Diante da Constituição, das decisões do STF e das investigações, esperava-se outro comportamento dos parlamentares. Mas não. Sob o pretexto de conferir celeridade à pauta econômica, o presidente da Câmara, deputado Arthur Lira (PP-AL), suspendeu as reuniões de comissões responsáveis pelas emendas. A decisão não impediu que o Executivo recebesse um ofício com indicação de pagamento de R$ 4,2 bilhões. Em seu despacho, Dino afirma que é necessário jogar luz sobre esse dinheiro e, em nome do diálogo, marcou reuniões técnicas em fevereiro e março. Os parlamentares bem que poderiam aproveitar as resoluções de Ano-Novo para pôr fim à farra das emendas.
Após alívio na dívida, é preciso cobrar
austeridade de Estados
Valor Econômico
É necessário que os Estados beneficiados
sejam mais responsáveis com despesas e recursos que destinarão aos
investimentos
Os Estados ganharam do Congresso um presente
de Natal - o Programa de Pleno Pagamento de Dívidas dos Estados (Propag),
aprovado nos últimos dias do ano legislativo. Ele pode reduzir a zero o juro a
ser pago e até abate o principal devido à União, com exigências óbvias e
sensatas de controle de gastos e boas práticas.
Aprovado pelo Senado em agosto, o Propag teve
tramitação rápida para os padrões do Congresso. No início deste mês recebeu
aval da Câmara dos Deputados e, uma semana depois, passou com espantosa
unanimidade no Senado - 72 votos a favor, nenhum contrário.
A proposta é generosa, como se espera de um
projeto que parte do ponto de vista do devedor. O desenho do Propag saiu da
caneta do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), que está deixando o
posto e não esconde o desejo de se candidatar ao governo de Minas Gerais, em
2026. Um dos Estados mais endividados, Minas obteve liminar do Supremo Tribunal
Federal (STF) para não pagar seus compromissos.
O programa autoriza o desconto dos juros até
chegar a zero e permite aos Estados transferir ativos e créditos a receber para
a União como parte do pagamento. O prazo de pagamento chega a 30 anos e as
parcelas terão os valores inicialmente reduzidos, começando em 20%, e só
chegando a 100% no quinto ano, escalonamento previsto no programa anterior, o
Regime de Recuperação Fiscal (RRF).
Além disso, exige como contrapartida
investimentos que dão visibilidade aos governantes em áreas em que teriam mesmo
que aplicar recursos, como educação, formação profissional, saneamento,
habitação, enfrentamento das mudanças climáticas, transporte e segurança
pública.
A melhor parte para o devedor é a
possibilidade de reduzir a zero o juro pago, corrigindo a dívida só pelo IPCA,
em vez dos atuais IPCA mais 4% ao ano. Dependendo da amortização feita no
início da adesão ao programa e dos investimentos realizados em contrapartida,
os juros caem para 2%, 1% ou zero. Parte dos recursos economizados com o
desconto de juros será canalizada para o Fundo de Equalização Federal (FEF),
que será redistribuído para investimentos em todos os Estados e no Distrito
Federal, o que foi apresentado como uma espécie de compensação para os que
estão cumprindo suas obrigações em dia.
É a quinta rodada de negociação da dívida de
Estados, maratona que começou em 1993, para preparar a entrada do Plano Real.
Até agora não houve sucesso em acabar com a bola de neve ao menos para os
endividados contumazes como Rio de Janeiro, Minas e Rio Grande do Sul - que,
com São Paulo, concentram 90% do total devido, estimado em R$ 765 bilhões.
Desses Estados, apenas São Paulo continua
quitando os compromissos. Minas não vem pagando por conta de autorização
judicial. O Rio aderiu ao RRF, mas supera os limites responsáveis da relação
entre dívida e receita líquida. O Rio Grande do Sul ganhou três anos de
suspensão dos pagamentos devidos e o aumento gradual de prestações depois desse
período, em consequência da tragédia das enchentes, que lhe deu direito a
decreto de calamidade pública votado no Congresso. Goiás também aderiu ao
Regime de Recuperação.
Na prática, o Propag significa a
transferência de encargos dos Estados para a União. Quando o PLP 121 seguiu do
Senado para a Câmara dos Deputados, o economista Manoel Pires, pesquisador e
coordenador do Centro de Política Fiscal e Orçamento Público do Instituto
Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (FGV Ibre), calculou seu
impacto para o governo federal. Pires levou em consideração a adesão de todos
os Estados ao novo programa e a possibilidade de todos preencherem as condições
para pagarem apenas a inflação e não os 4% de juros mais IPCA. Como naquele
momento, em setembro, o governo federal pagava juros ao redor de 6% mais IPCA
para financiar sua dívida, o custo para a União seria de R$ 48 bilhões por ano,
para suportar a diferença. A conta aumenta se for considerado o período de
transição autorizado para os Estados que estão no RRF - Goiás, Rio de Janeiro,
Rio Grande do Sul e também Minas, cuja participação estava pendente.
De lá para cá, as condições de financiamento
da União pioraram muito devido à desconfiança do mercado financeiro sobre a
fragilidade fiscal do governo federal. Pode-se dizer que o custo para a União
de bancar o novo programa de renegociação da dívida dos Estados aumentou em um
terço, dada a escalada dos juros nas negociações com títulos públicos neste fim
de ano. Se o mercado financeiro é intransigente ao exigir juros mais elevados
da União por não acreditar na efetividade do corte de gastos, o Propag é generoso
nas exigências de responsabilidade fiscal feitas aos Estados, sempre
negligenciadas em planos anteriores, e ao incentivar os gastos em investimentos
em áreas que deveriam, mesmo em condições normais, receber atenção.
Aprovado o programa, resta exigir dos Estados
que sejam mais responsáveis com suas despesas e que os recursos que poderão
destinar para obter o corte de juros sejam bem dirigidos. É possível
destiná-los, por exemplo, aos programas de educação profissional, o que seria
uma ótima escolha.
Elevar a maior carga tributária da AL não é
solução
Folha de S. Paulo
Arrecadação de impostos no Brasil é excessiva
para um país de renda média; ajuste das contas públicas deve conter gastos
A carga tributária brasileira há anos oscila
em torno de um terço da renda nacional.
Numa compilação recente da OCDE,
entidade que reúne países mais desenvolvidos, ela
atingiu exatos 33,3% do Produto Interno Bruto em 2022, nível bem
acima da média da América
Latina (21,5%) e comparável ao do grupo dos mais ricos (34%).
A marca do Brasil no indicador, que considera
a arrecadação conjunta em todos os níveis de governo, deve-se a um patamar
também elevado de despesas públicas, sobretudo as sociais —que aqui chegam a
60% do total, de modo similar aos dos sócios da OCDE (entre 50% e 70%).
As políticas brasileiras, no entanto, são
menos eficientes. Aqui, segundo dados da Comissão Econômica para a América
Latina e o Caribe (Cepal), o gasto público reduz a desigualdade social (medida
pelo índice de Gini) em 16,4%, ante 23% na média da OCDE.
Estamos acima da América Latina, que registra
9%, mas ao custo de peso muito maior sobre famílias e empresas contribuintes.
A anomalia da carga de impostos ante a renda
do país se dá tanto no volume de arrecadação como na sua distribuição,
regressiva e ancorada na taxação de bens e serviços, que oneram
desproporcionalmente a população mais pobre. A reforma em curso pretende simplificar
a cobrança desses tributos indiretos, mas sem abrir mão de receitas.
Nessa rubrica, que agrega todas as cobranças
sobre produção e comercialização, coletam-se 13,7% do PIB, acima da
média tanto dos mais ricos como dos latino-americanos, que fica entre 10% e 11%
do produto.
Mas os maiores desvios ante as nações da
região aparecem na cobrança de impostos sobre a renda e sobre a folha de
pagamentos (que tem o objetivo de financiar a Previdência
Social).
O Brasil arrecadou no ano retrasado 9,2% do
PIB sobre a primeira base e 8,1% sobre a segunda, cifras muito acima das médias
da América Latina, de 6,3% e 3,6%, respectivamente.
Decerto há espaço para que o país avance mais
na tributação direta e progressiva sobre a renda, que na OCDE responde por 12%
do PIB. Diante do nível já elevado da carga total, entretanto, seria
aconselhável reduzir os encargos da taxação indireta. Eliminar isenções a
grupos privilegiados também é imperativo.
Os dados mostram que é escassa a margem para
o aumento da receita pública, dada a carga já excessiva para um país de renda
média. Desde os anos 1990, a carga tributária aumentou em 5,5 pontos
percentuais, o que reflete o fim dos ganhos que a inflação antes
descontrolada proporcionava para o caixa do governo.
O ajuste para reduzir
o déficit nas contas e estabilizar a dívida pública precisa passar por cortes
de despesas, algo que o governo Luiz Inácio Lula da
Silva (PT)
não se mostra disposto a fazer.
Insistir apenas em mais arrecadação, além de ineficaz, será um risco para o
crescimento econômico e a geração de empregos.
Diminuir ainda mais o número de partos na
adolescência
Folha de S. Paulo
Brasil alcança redução importante do
indicador, mas é preciso enfrentar desigualdades e ampliar acesso ao aborto
legal
No primeiro semestre deste 2024, 141 mil
jovens de 10 a 19 anos deram à luz no Brasil, ante 286 mil durante o
mesmo período de 2014. Tal queda, de cerca de 50%, é bem-vinda, já que pela
primeira vez o país pode vir a concluir um ano com taxa abaixo da média global.
Mas ainda há grandes desafios, como as
discrepâncias regionais e o acesso ao aborto legal
no caso do estrato entre 10 e 14 anos, dado que, segundo a nossa legislação,
manter relação sexual com meninas nessa faixa etária é considerado estupro de
vulnerável.
O Sistema de Informações sobre Nascidos Vivos
mostra queda a partir de 2000 no número total de partos em adolescentes
brasileiras —pelo critério da Organização Mundial da Saúde,
a adolescência vai dos 10 aos 19 anos.
De 2010 a 2014, houve estagnação, e a partir
daí observa-se redução ininterrupta, de 562.608 para 303.025 no ano passado. Na
população de 10 a 14 anos, foram 13.934 partos em 2023, ante 28.244 em 2014.
Diminuição importante, de fato, mas que esconde desigualdades.
Segundo levantamento da Folha com
base em dados da OMS,
a taxa média global de partos em meninas nessa faixa etária a cada 1.000
mulheres no ano passado foi de 1,5. No Brasil, ela ficou acima (2,14), sendo que na
região Norte do país chegou a 4,72, superior à média da África subsaariana
(4,4), a pior do planeta. Na Europa e
na América do Norte, o índice é de apenas 0,1.
Mesmo desenvolvidas, nações de dimensões
continentais e com vastas áreas de natureza selvagem enfrentam problemas de
logística para prover serviços de forma igualitária, mas isso não pode servir
como desculpa para a taxa vexatória na amazônia.
Governos nas três esferas precisam conter a
gravidez na adolescência alocando recursos com base em evidências para
beneficiar os cidadãos mais vulneráveis.
Além de facilitar o acesso a contraceptivos
pelo SUS, deve-se integrar o setor de educação como indutor de conhecimento
sobre sexualidade e reprodução —assim indicam organismos internacionais como a
Unicef. O moralismo da oposição conservadora sobre essas ações não pode ter vez
em políticas públicas.
Ademais, é papel do Estado garantir que
jovens de até 15 anos possam realizar abortos seguros. Trata-se de um direito
estabelecido por lei, ao qual estados, municípios e até mesmo o sistema
judicial têm colocado
obstáculos.
É o mínimo que o poder público deve fazer para que as meninas brasileiras desenvolvam suas potencialidades sem as limitações impostas pela maternidade.
Uma chance para o Brasil
O Estado de S. Paulo
Se bem feita, a investigação da PF sobre a
burla de decisões do STF pela cúpula do Congresso para dispor de emendas sem
transparência pode livrar País de degeneração institucional
Há cerca de dez anos, aproveitando-se da
fraqueza política da então presidente Dilma Rousseff, o Congresso começou a
tomar para si, de forma desproporcional e opaca, a execução de uma parcela cada
vez maior do Orçamento da União. Tudo começou com a promulgação da Emenda
Constitucional 86, que, em 17 de março de 2015, tornou obrigatória a execução
das emendas individuais dos parlamentares até o limite de 1,2% da receita
corrente líquida. De lá para cá, o que se viu é história – e uma história bem
feia de vilipêndio da Constituição e do próprio ideal republicano que
culminaria no “orçamento secreto”, revelado por este jornal, e suas múltiplas
variações.
Pela primeira vez em todo esse tempo, a
sociedade tem uma chance real de se ver livre dessa degeneração institucional
engendrada por seus representantes que, a um só tempo, abastarda a democracia
representativa e interdita o bom debate em torno de uma agenda virtuosa para o
Brasil. No dia 23 de dezembro, como se sabe, o ministro do Supremo Tribunal
Federal (STF) Flávio Dino suspendeu o pagamento de todas as emendas
parlamentares – tanto as previstas até o fim de 2024 como as orçadas para 2025
– até que os deputados e senadores, enfim, criem mecanismos honestos de
aferição da regularidade da disposição de bilhões de reais em recursos
públicos. Era o mínimo a fazer.
Mas Dino foi além e determinou que a Polícia
Federal (PF) investigue a burla das decisões do STF pela cúpula do Congresso
para a manutenção desse estado de flagrante permanente de desrespeito à Corte
e, sobretudo, à Lei Maior. Como revelou a revista piauí, o presidente da
Câmara, Arthur Lira (PP-AL), suspendeu o trabalho das comissões da Casa para se
assenhorear pessoalmente do destino das emendas que ainda seriam pagas até o
fim de 2024, valendo-se de uma suposta anuência do colégio de líderes para exercer
esse poder sem qualquer transparência em benefício de seu reduto eleitoral.
Investigações da PF sobre casos de
malversação de emendas parlamentares há aos montes. O “orçamento secreto” é uma
usina de corrupção que hoje faz os “Anões do Orçamento” parecerem personagens
de história infantil. Agora, contudo, a PF avançará sobre o núcleo responsável
por tramar a distribuição dessas emendas ao abrigo do escrutínio público, sem
vinculação com projetos claros e sem qualquer isonomia entre deputados e
senadores. Vale dizer, o que está na mira da PF são os grupos políticos
liderados por Lira e pelo senador Davi Alcolumbre (União-AP), provável futuro
presidente do Senado e considerado uma espécie de capo di tutti capi da
distribuição de emendas na Casa.
Não há espaço para ingenuidade nesta página.
De modo que é forçoso reconhecer que a decisão de Dino, seja pelo timing –
exarada na primeira segunda-feira após o início do recesso parlamentar –, seja
pelo serviço prestado ao presidente Lula da Silva – que viu seu tímido pacote
fiscal ser aprovado no apagar das luzes do Congresso sob a promessa de
liberação de emendas que, ao fim e ao cabo, não foram pagas –, permite a
leitura de que houve um socorro político do STF ao Palácio do Planalto. O fato
é que, à luz da Constituição, que é o que importa, a decisão de Dino, que ainda
precisa ser referendada por seus pares, vai na direção correta, qual seja, a de
exigir transparência na disposição de recursos públicos, dando fim a um
“inaceitável quadro de inconstitucionalidades em série, demandando a
perseverante atuação do Supremo Tribunal Federal”, como escreveu o ministro.
O fato de Lira ter suspendido o recesso e
convocado uma reunião de emergência do colégio de líderes para o dia seguinte
ao Natal diz muito sobre o potencial dessa investigação da PF contra as traças
do Orçamento da União. O que está sob ameaça é o fluxo de bilhões de reais
controlado por representantes eleitos que só estão interessados em conservar
poder, quando não em enriquecer ilicitamente, e não em destinar emendas
orçamentárias para projetos bem formulados em suas bases para fazer do País um
lugar mais justo para todos os cidadãos, o que seria legítimo.
O fim desse grupo, ainda que por intervenção
policial, pode ser o início de um novo Brasil.
A cegueira de Lula com o dólar
O Estado de S. Paulo
Saída de dólares bate recorde, real é a moeda
que mais perde valor, repasse do câmbio aos preços acelera, e Lula não enxerga
que desequilíbrio se deve em grande parte a seu governo
Enquanto o dólar consolidava posição acima
dos R$ 6,00, o Banco Central (BC) registrava, nos primeiros 19 dias de
dezembro, a saída do País de US$ 14,699 bilhões, um recorde histórico da série
iniciada em 2008. Dois movimentos conectados que se juntam a outro ainda mais
danoso, conhecido na literatura econômica por pass-through, que
caracteriza o repasse da mudança do câmbio para os preços aos consumidores e o
impacto nos investimentos e que afeta também os volumes do comércio exterior e
os preços de importações e exportações.
O repasse cambial aos preços domésticos de
bens de consumo está ocorrendo em velocidade maior do que normalmente é
observado porque a economia está muito aquecida, com crescimento da demanda em
ritmo mais intenso do que a capacidade de oferta, resultado de políticas de
incentivo ao crédito e, em grande parte, ao aumento de programas de
transferências de renda. Economistas ouvidos pelo Estadão situaram o
repasse do câmbio aos preços entre 8% e 10%, com impacto certeiro sobre a
inflação não apenas no curtíssimo prazo, mas também no futuro. Uma consultoria
chega a calcular aumento de 1 ponto porcentual no IPCA em 12 meses.
À exceção dos integrantes do BC, os
representantes do governo Lula da Silva costumam atribuir a escalada do dólar a
especulações do mercado financeiro. Em meio à alta cambial e à saída de
dólares, o líder do governo no Senado, Jaques Wagner, usou a tribuna para, mais
uma vez, falar em especulação “de altíssimo grau”. Em julho, o próprio Lula
havia dito o mesmo. “É uma especulação. Há um jogo de interesse especulativo
contra o real neste país. Não é normal o que está acontecendo”, disse em uma de
suas entrevistas a programas de rádio.
O dólar estava cotado, então, em R$ 5,653 e o
estopim para a alta, na ocasião, foram as duras críticas do presidente à
política monetária do Banco Central, que interrompeu em junho o ciclo de queda
na Selic, depois de cortes na taxa de juros por sete reuniões consecutivas do
Comitê de Política Monetária (Copom). O banco decidira, por unanimidade, voltar
à política contracionista para tentar manter o processo desinflacionário, que
perdia terreno diante do sobreaquecimento da economia. Irritado, Lula disse que
“não se pode inventar crises” e “jogar a culpa” nas declarações do presidente
da República.
Estivesse ele com os pés no chão e não
pairando em devaneios nacional-desenvolvimentistas, Lula da Silva se daria
conta de que a insegurança do mercado ocorre em consequência dos atos de seu
governo, que rotineiramente contradizem discursos oficiais de austeridade
fiscal. O grau de especulação que pode estar embutido na alta do dólar se deve
ao pânico em relação aos planos fiscais, como descrito em artigo recente da
revista britânica The Economist.
O texto, reproduzido pelo Estadão,
destaca que o real é a moeda com pior desempenho em 2024 – até a semana do
Natal, a desvalorização acumulada ultrapassava 27%, mesmo após as intervenções
do Banco Central para tentar conter a alta da moeda americana. O pacote fiscal
medíocre apresentado pelo governo, que havia prometido um amplo corte de
gastos, está no centro da atual queda vertiginosa do real. “Os mercados
financeiros estão clamando por uma reviravolta fiscal, que o governo reluta em
oferecer”, diz o artigo, que recorre a uma declaração do chefe de pesquisa
econômica para a América Latina do banco Goldman Sachs, Alberto Ramos, para
apresentar um diagnóstico para o Brasil: “Quanto mais você esperar, maior será
o risco de que as coisas sejam feitas da maneira mais difícil, e o mercado
forçará a correção. Os sintomas de uma crise estão aí”.
Recente relatório sobre as perspectivas para
as companhias na América Latina em 2025, divulgado pela agência de
classificação de risco Fitch Ratings, avalia que a piora das condições
econômicas no Brasil ameaça os negócios das empresas. Ressalte-se que a saída
de dólares verificada pelo BC vem aumentando não apenas nas empresas, mas
também por pessoas físicas. Ou o governo se convence que é preciso mudar de
rota ou caminhará direto para a crise.
Bastava o cartão vermelho
O Estado de S. Paulo
É exagerada a prisão de jogadoras do River
que dirigiram ofensas racistas a adversárias num jogo
Trata-se de evidente exagero a prisão
preventiva de quatro jogadoras do time feminino de futebol do River Plate sob
suspeita de injúria racial durante uma partida contra o Grêmio em São Paulo. O
episódio obviamente deveria ter sido tratado como uma questão de indisciplina
desportiva, e não como um caso de polícia.
No campo, o time do River foi duramente
punido, tendo sido eliminado da partida após ver várias de suas jogadoras serem
expulsas por envolvimento na suposta agressão de cunho racista, dirigida a um
gandula e a algumas jogadoras do Grêmio. Fora do campo, a punição foi ainda
maior: o time argentino não poderá participar da competição pelos próximos dois
anos. E é provável que as jogadoras que protagonizaram a violência também
sofram sanções esportivas e profissionais – o próprio River manifestou “seu
mais absoluto repúdio” e afirmou que tomará “medidas disciplinares”, além de
trabalhar “para erradicar esse tipo de comportamento”.
Isso deveria bastar. No mundo do futebol, são
comuns as ofensas entre jogadores, sobretudo quando há grande rivalidade, como
acontece sempre que Argentina e Brasil se enfrentam. Se a polícia fosse prender
cada jogador que xinga outro durante um jogo entre brasileiros e argentinos,
não haveria cadeia suficiente no mundo.
Consta que Leônidas da Silva, um dos maiores
jogadores de futebol que o Brasil produziu, aconselhou um companheiro que se
queixara das ofensas que vinha sofrendo durante uma partida a relevar aquele
comportamento, dizendo que “a mãe que você leva para o campo não tem nada que
ver com a mãe que você tem em casa”. Sábias palavras do craque, apelidado de
“Diamante Negro”.
Isso significa que, numa partida de futebol,
quando um jogador agride outro, ele é expulso de campo e suspenso por um ou
mais jogos, conforme o artigo 254-A do Código Brasileiro de Justiça Desportiva,
e não detido por lesão corporal com base no artigo 129 do Código Penal.
Assim, a draconiana decisão de manter na
cadeia atletas que apenas reproduziram o comportamento lamentável que muitos
outros jogadores argentinos reservam a seus adversários brasileiros negros,
comumente chamados pelos hermanos de “macaquitos”, parece destinada a
provar que o Brasil é um lugar que não tolera racismo – o que, infelizmente,
sabemos que não é verdade.
Não é a primeira vez que isso acontece. Há
quase 20 anos, em 2005, Desábato, um jogador argentino do Quilmes, foi preso,
também sob acusação de injúria racial, por ofender o jogador Grafite, do São
Paulo, durante uma partida no Morumbi. O então secretário de Segurança do
Estado, que via o jogo pela TV, decerto insuflado pelo narrador que se indignou
com o episódio, mandou a polícia agir. Estava armado o circo.
É evidente que ofensas de cunho racista no futebol são abomináveis, mas só deveriam se converter em caso de polícia quando acontecem nas arquibancadas. A esse propósito, aliás, há robusta campanha mundial contra o racismo nos estádios. Ademais, torcedores racistas volta e meia são presos e processados. Ou seja, está claro que o racismo não é tolerável – mas também não é razoável que se prendam atletas apenas porque xingaram adversários dentro de campo.
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