sexta-feira, 27 de dezembro de 2024

Maquiavel, ainda está aqui - Pablo Spinelli *

Dedico à memória de Luiz Werneck Vianna, analista de conjuntura ímpar.

O ano de 2025 começará com um legado pesado do ano anterior. Enquanto no Brasil há uma queda dentre aqueles que acreditam na democracia como melhor regime político**, como também há um clima de morosidade e inação por parte do governo que demorou e resiste a uma reforma ministerial que dê conta das forças políticas que foram vitoriosas nas últimas eleições municipais***, e tal pasmaceira se estendeu a um Natal menos comemorativo do que dantes. No cenário externo, a administração Biden nada resolveu sobre o tema que “pariu o rato”, como diria Karl Marx em O 18 Brumário de Luís Bonaparte: a guerra. Há um cenário catastrófico no leste europeu e no Oriente Médio que não só ajudou a eleger Donald Trump como pode dar-lhe, se houver a intervenção que propôs na campanha, uma candidatura ao Nobel da Paz, prêmio que Henry Kissinger recebeu na década de 1970.

Isso posto, o que podemos fazer? Estudar e analisar os clássicos, pois como já foi dito com muito maior brilho, ler os clássicos torna-se fundamental para entender o que eles ainda têm a dizer para nossos problemas, mesmo que o cenário seja diverso. A longevidade do clássico é porque ele é extemporâneo às circunstâncias às quais foi escrito, seja no mundo da ficção, seja no mundo das ciências sociais, afinal, como disse o escritor Ítalo Calvino em primoroso texto, melhor ler os clássicos do que não lê-los.****

Portanto, como estamos diante de encruzilhadas que exigem ações transformadoras, revolucionárias (de outro tipo que as clássicas do século passado) é necessária uma teoria, um escopo de igual modo transformador, revolucionário. Eis que o filósofo político Newton Bignotto nos oferece um pequeno, mas nada simplório livro sobre a trajetória do pai da Ciência Política, Nicolau Maquiavel em seu O jovem Maquiavel: o aprendizado da política. Rio de Janeiro: Bazar do tempo, 2024.

Nesse livro há duas importantes notas antes de lê-lo. O fato do termo jovem não entra em consonância com aquilo que parte da escola francesa consagrou sobre Marx, que foi dividido em “jovem” e “velho” e as implicações que tal divisão resultaram. O jovem Maquiavel é aqui posto enquanto um jovem homem que vindo de uma família sem posses se tornou segundo secretário da diplomacia da República de Florença, uma república que logrou sair do controle dos Médici e do monge Savonarola depois de muito sangue derramado para virar uma república com participação cidadã, mesmo que com traços aristocráticos, mas sob escrutínio popular severo. O segundo destaque é que Bignotto não pretende fazer uma pequena biografia determinista, ou seja, seu objeto de estudo (agora na gramática maoísta 2.0 é sujeito de estudo) não é analisado pela teleologia, seu livro mais famoso não estava germinando desde a juventude e daí seus conceitos como fortuna e virtú, a necessidade de separar a esfera política da religiosa, os fundamentos de um exército profissional já estariam no jovem e nas suas valiosas ações diplomáticas; ao contrário. Bignotto a partir de uma extensa leitura de fontes primárias e secundárias mostra que as ações políticas e a conjuntura exigiam do jovem florentino formulações para os problemas vividos, dentre eles, o fundamental: como uma república frágil e sem exército conseguiria se colocar diante de um cabo de guerra que envolvia atores políticos como França, Roma, Espanha, o Papa, César Bórgia, dentre outros.

É desse denso processo de intervenção na política que há o processo de forja daquele que em desgraça no final da carreira, após prisão, tortura e exílio, iria se debruçar sobre os clássicos que sempre teve acesso desde a adolescência - Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio - como também iria expor seu pensamento político de forma objetiva e caudatário do que presenciou, das derrotas e (poucas) vitórias na carreira diplomática - O Príncipe.

Newton Bignotto faz a trajetória de Maquiavel em seu livro a partir dos caminhos abertos por Quentin Skinner***** na história dos conceitos políticos. Ele mapeia o vocabulário político da época da república florentina que era representado pelo seu humanismo cívico. Bignotto nos traz aqui personagens fundamentais para o pensamento político maquiaveliano, como Leonardo Bruni, autor estudado e traduzido pela professora Fabrina Magalhães Pinto.

Além da gramática política, o autor de forma didática para leigos não conhecedores daquela época mostra as instituições florentinas pelas quais a trajetória do autor de A Mandrágora fez importante contribuição. Essa descrição nos mostra que em política podemos fazer muita coisa, mas não tudo que queremos. As cartas de Maquiavel para a embaixada e para amigos próximos são importantes para a compreensão de como o segundo secretário entendia a política externa do seu tempo e a partir dela vai procurar seja pela experiência vivida, seja pela história, conceituar e criar termos que se cristalizaram na sua obra mais conhecida, O Príncipe.

O ponto alto do livro é a inserção de Maquiavel em um termo que lhe será muito caro: o tema da força. A diplomacia será entendida por Maquiavel como um dos vértices de um triângulo que são completados pelo Direito e pela força. A força será o norte de jovens na Península Itálica, dentre eles, Maquiavel. A confiança de Florença em manter um grupo de mercenários fazia com que o resultado de sua política fosse tênue, assim como a procrastinação a passos de tartaruga que as elites florentinas orientavam o jovem diplomata a exercer com aliados mais poderosos, dentre eles, o rei da França. A Itália tinha em seu cotidiano a guerra, o ponto fora da curva era a paz. Desse modo, Maquiavel estuda a arte da guerra e une teoria e prática quando organiza e luta com exército florentino sobre Pisa. As páginas sobre o estudo da guerra são brilhantes.

Cumpre concluirmos com honestidade intelectual. Bignotto não faz de Maquiavel um apologista da força bruta, o que fica claro com uma passagem do próprio Maquiavel em O Príncipe que o uso das leis é do homem, a força bruta é das bestas, mas se usa muito mais essa do que aquela. A força faz parte da política não como outros meios dela, mas uma instrumentalização a partir da política, ou seja, a astúcia da raposa é saber como e quando usar a força do leão, parafraseando metáfora famosa de Maquiavel. “O uso da força sem o cálculo das resistências que ela provoca pode levar a um resultado contrário ao desejado pelo governante que dela se serviu” (p. 101). Dessa forma a derrota de Biden fica explicada.

Por último, Bignotto nos traz um Maquiavel que analisava a conjuntura em tempo real. Como “analista diante de uma situação concreta, ele procura delimitar o campo dos possíveis para depois apontar os caminhos que se oferecem para os envolvidos no problema” (p.105). O uso da força não é a exclusão da política, ao contrário, a evidência como o núcleo central das ações e que a guerra é uma das opções em sua órbita. A prudência antes de agir, segundo Bignotto, é uma tônica do jovem Maquiavel, mas prudência sem ação é a derrota, como o florentino viu na derrocada de Florença pelo retorno dos Médici. O Maquiavel que nos salta os olhos é um Maquiavel da ação, mal comparando, um Marx ou Engels dos anos 1840 e 1850, homem de práxis que para uma situação concreta é necessária uma análise concreta. Esse Maquiavel posto à luz por Newton Bignotto é necessário para o caminhar da nossa república e da política que ela exige.

* Doutorando em PPGCP-UNIRIO e professor da educação básica das cidades de Saquarema e do Rio de Janeiro.

** https://www1.folha.uol.com.br/.../datafolha-69-dizem...
*** https://gilvanmelo.blogspot.com/.../reshuffle-da-coalizao...

**** Calvino, Ítalo. Por que ler os clássicos? São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
***** Skinner, Quentin. As fundações do pensamento político moderno. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.

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