quarta-feira, 8 de janeiro de 2025

O poder da palavra - João Pereira Coutinho*

Folha de S. Paulo

Para Michael Walzer, liberal não define o que se é, mas como se é

Flanando pelas ruas de Edimburgo, leio nesta Folha o artigo de Deirdre McCloskey sobre os verdadeiros liberais.

Sorrio. Estou no lugar certo: foi aqui, na Escócia, em pleno século 18, que a palavra "liberal" surgiu pela primeira vez em inglês com conotação abertamente política.

Um pormenor, porém, merece ser realçado: "liberal" nasceu como adjetivo antes de se tornar substantivo. Como explica o economista Daniel Klein, que tem estudado essas arqueologias conceituais, foram iluministas escoceses, como Adam Smith, que definiram como liberal um sistema de governo que permite a cada um procurar os seus interesses e fins de vida, desde que respeitando a lei geral.

A palavra acabaria por evoluir até se cristalizar numa ideologia política —o liberalismo— e num substantivo —o liberal. E, como normalmente acontece com ideologias, surgiram escolas, subescolas, sub-subescolas, que se guerreiam e se excomungam.

Mas haverá alguma vantagem em retornar ao adjetivo? E, em caso afirmativo, será possível encontrar espíritos liberais nos lugares mais inusitados?

O filósofo Michael Walzer, em ensaio testamentário, se ocupa dessas questões todas citadas.

O título e o subtítulo resumem o espírito da sua obra: "The Struggle for a Decent Politics: On ‘Liberal’ as an Adjective" (ou em português, a luta por uma sociedade decente: sobre ‘liberal’ como adjetivo, Yale, 184 págs).

Eis a proposta de Walzer: hoje, a palavra liberal deveria ter uma dimensão essencialmente moral. Ser uma pessoa liberal significa, em traços gerais, ter uma mente aberta, ser generoso, ser capaz de aceitar a ambiguidade, condenar o fanatismo e não tolerar a crueldade.

Como escreve o filósofo, "liberal" não define o que se é, mas como se é. É uma forma de estar na vida, de agir em sociedade, de nos relacionarmos com os outros. Com liberalidade.

Isso significa que o número de liberais pode ser bem maior do que Deirdre McCloskey imagina. No seu artigo, McCloskey fala em progressistas, libertários —e liberais "suficientes", como ela.

Mas Walzer é mais generoso (mais liberal?) com a fauna humana. Conservadores liberais, nacionalistas liberais, democratas liberais, até socialistas liberais têm espaço nessa arca de Noé. "Liberal", quando aplicado a cada um desses nomes, é uma forma de evitar que as ideologias degenerem nas suas piores versões, mantendo ainda um respeito primordial pela liberdade e dignidade humanas.

Usando os exemplos de Walzer, um democrata liberal respeita a vontade da maioria. Mas também entende que as maiorias necessitam de limites constitucionais que muitas vezes frustram as pulsões da multidão.

Há quem discorde. Há quem prefira uma democracia "iliberal", como acontece na Hungria de Viktor Orbán. É um desejo arriscado: quando tudo depende da maioria, é melhor você ter a certeza de que nunca estará entre a minoria que participa.

E que dizer de socialistas liberais, esse supremo paradoxo?

Walzer não fala, obviamente, de ideologias totalitárias, como o comunismo. Fala da tradição social-democrata que aceita a "liberdade civil burguesa" como forma de atingir uma sociedade menos desigual.

Um socialista liberal não abandona o seu desejo de igualdade; mas entende que esse destino deve ser trilhado por via democrática, sem atropelo de direitos fundamentais e fazendo uma distinção entre desigualdades toleráveis e intoleráveis.

Ou, como escreve Walzer, é tudo uma questão de convertibilidade: há coisas que o dinheiro pode comprar e outras que não pode. É indiferente se os mais ricos compram artigos de luxo que estão inteiramente vedados à restante população.

Não é indiferente se apenas os mais ricos têm acesso a saúde, justiça ou influência política.

Por último, Walzer dedica algumas linhas aos "professores liberais", esse artigo cada vez mais raro nos departamentos de humanidades. Como reconhecer um?

Muito fácil: um professor liberal é aquele que, apesar das suas convicções mais firmes, não as impinge aos alunos como a última verdade revelada. Ou, então, é aquele que apresenta visões contrárias à dele com a honestidade intelectual possível.

Imagine um professor progressista que apresenta argumentos conservadores sem hostilidade ou caricatura. Ou vice-versa.

Eu não disse que este era um artigo para lá de raro?

Sim, os liberais podem ser divididos em vertentes clássicas, modernas, ordoliberais, libertárias, neoliberais, o diabo.

Mas a questão decisiva é saber primeiro se estamos na presença de liberais liberais.

*Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa

 

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