Correio Braziliense
O 8 de janeiro precisa ser visto como o ápice
de um fenômeno que vem se construindo ao longo de mais de duas décadas no país:
a percepção da política como a arena entre amigos e inimigos
Atordoados, catatônicos, surpresos. Não
faltaram adjetivos para muitos dos brasileiros que assistiam ao evento do 8 de
janeiro de 2023. Todos que eu conhecia tentavam entender o que estava ocorrendo
e como chegamos a esse ponto. Essas são as duas grandes dúvidas sobre o tal dia
que não podemos esquecer.
A primeira está longe de ser um consenso. Uma pesquisa Datafolha publicada em março de 2024 revelou que 30% dos brasileiros viram o momento como uma tentativa de golpe. Porcentagem que, obviamente, diminuía quando se considerava apenas os eleitores de Jair Bolsonaro e aumentava entre os que votaram em Lula. 65% interpretavam o 8 de janeiro apenas como um ato de vandalismo. No meio acadêmico, a maioria definiu aquele dia como um ato antidemocrático e uma tentativa de golpe de Estado. Porém, houve vozes dissonantes, que viam na ausência de armas e na falta de envolvimento direto de militares evidências mais próprias de uma rebeldia violenta.
Se, por um lado, é verdade que a invasão aos
Três Poderes foi diferente do que a história demonstra sobre golpes de Estado
e, por isso, parece precipitado vê-la desse modo, por outro, um ataque àquela
Praça não é um simples ato de oposição. Como professor e pesquisador na área de
geografia política da Universidade de Brasília (UnB), não consigo dissociar o
que ocorreu de onde ocorreu. Isso significa dizer que a localização molda o
evento, dando contornos distintos caso o "onde" fosse diferente. Uma
cidade fundada para ser a capital de um país é um geossímbolo político. A Praça
dos Três Poderes, cuidadosamente planejada com certos traços arquitetônicos, é
um óbvio geossímbolo da democracia. Quando um espaço é um geossímbolo, um
ataque nunca é um simples vandalismo a um edifício. É um ataque às suas ideias.
A destruição da Suprema Corte, do Congresso
Nacional e do Palácio do Planalto foi, sim, um ataque à democracia. Se não uma
tentativa de golpe, foi um modo explícito de subtrair a importância das
instituições do sistema político democrático, acreditando que a ação direta da
violência é legítima ante a um contexto considerado injusto. As consequências
da proliferação desse pensamento seriam desastrosas.
Porém, como chegamos a esse ponto? Essa
segunda pergunta merece mais pesquisas. No entanto, há alguns direcionamentos
possíveis de traçarmos. Fenômeno não tão comum antes de 2006, os mapas
eleitorais a partir daquele ano revelam uma polarização crescente na sociedade
brasileira, que já podia ser vista em escala nacional com recortes regionais
claros. Porém, todo o turbilhão político-econômico que vivemos a partir de 2014
— crise econômica, corrupção e impeachment — reforçou o terreno para a ascensão
de um populismo ainda mais perigoso do que aqueles que o Brasil conhecia.
A literatura acadêmica é bastante confusa na
definição de populismo, pois tem uma natureza transversal em todo o espectro
ideológico e características distintas segundo o contexto. De um modo geral, é
um discurso que divide a sociedade em duas forças sociopolíticas opostas,
caracterizadas por um "povo" com valores superiores e uma
"elite" (política, econômica, intelectual e/ou cultural) percebida
como responsável pelo declínio institucional, financeiro e social e pela
decadência moral do Estado. Em outras palavras, o reforço do binômio "nós
x eles" é levado às suas últimas consequências. "Eles" se tornam
a razão de uma desconfiança nas instituições democráticas, e alguém do
"nós" passa a ser visto como uma liderança forte para corrigir a
deturpação percebida. Os invasores da Praça dos Três Poderes tinham discursos
salvacionistas evidentes, e a destruição do bem público era vista como um modo
de nos resgatar. É daí que surge a violência populista — indivíduos agridem e
depredam com o objetivo de manter o líder messiânico no poder.
O 8 de Janeiro de 2023 é mais do que uma
vergonha nacional. Precisa ser visto como o ápice — até o momento — de um
fenômeno que não cessa no Brasil e que vem se construindo, de diferentes modos
e intensidades, ao longo de mais de duas décadas: a percepção da política como
a arena entre amigos e inimigos, na qual o "eles" precisa ser
derrotado e expurgado. O outro é visto como nocivo, e sua percepção de mundo
como a razão dos males da nação. A política, como administração dos interesses
dos diferentes, precisa ressurgir no país para que projetos de Estado sejam
discutidos e levados adiante. Só assim, é possível pensar um Brasil a longo
prazo.
*Professor de geografia política -
Departamento de Geografia da Universidade de Brasília (UnB)
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