quarta-feira, 3 de dezembro de 2025

Não é o Estado que estabelece a verdade, por Nicolau da Rocha Cavalcanti

O Estado de S. Paulo

Criticar o Poder Judiciário é um direito, mesmo que as críticas sejam duras ou injustas. Não cabe criminalizar a opinião

Ficamos todos um pouco obnubilados – incrédulos, há de se reconhecer – com a atividade de metalurgia artesanal de Jair Bolsonaro, curioso com sua tornozeleira eletrônica. Tenha qual sido o real motivo, o uso do ferro de solda sobre o dispositivo eletrônico conferiu legitimidade à prisão preventiva decretada horas depois por Alexandre de Moraes.

Mas a decisão do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) não falava apenas em violação da tornozeleira eletrônica como fundamento para a prisão. Dizia: “As manifestações do filho do réu no referido vídeo revelam o caráter beligerante em relação ao Poder Judiciário, notadamente o Supremo Tribunal Federal, em reiteração da narrativa falsa no sentido de que a condenação do réu Jair Bolsonaro seria consequência de uma ‘perseguição’ e de uma ‘ditadura’ desta Suprema Corte”.

Alexandre de Moraes entende que “manifestações” de “caráter beligerante em relação ao Poder Judiciário” são motivo para prisão preventiva. Diante dessa peculiar compreensão, compartilhada por não poucas pessoas, cabe lembrar o conteúdo da Lei de Defesa do Estado Democrático de Direito (Lei 14.197/2021), que revogou a Lei de Segurança Nacional (Lei 7.170/1983) e criou os crimes pelos quais Jair Bolsonaro foi condenado. Como orientação para a aplicação dos tipos penais contra a democracia, o legislador estabeleceu que “não constitui crime (...) a manifestação crítica aos Poderes constitucionais” (artigo 359-T do Código Penal).

Criticar o Poder Judiciário é um direito, mesmo que as críticas sejam duras, injustas ou exageradas. Tal possibilidade não é uma concessão bondosa que o legislador fez aos cidadãos. É estrita interpretação sistêmica do nosso ordenamento jurídico. Não cabe criminalizar a opinião. A liberdade de expressão inclui manifestações fortes e sonoras contra os Poderes constituídos.

Há ainda outro aspecto da decisão de Alexandre de Moraes, de certa forma mais grave, por afetar o núcleo do Estado Democrático de Direito: o seu caráter laico. Sim, a laicidade estatal não é mera isenção a

respeito das religiões. É a incompetência absoluta do poder público para definir a verdade e, por consequência, o que seria uma “narrativa falsa”. No regime democrático, o Estado não tem a atribuição de estabelecer a verdade.

Eis o legado das guerras religiosas europeias, após a reforma protestante: a disputa pela verdade compete à sociedade, não ao poder estatal. O debate sobre as diferentes possíveis narrativas é elemento indispensável da liberdade de expressão. O pluralismo de ideias e visões de mundo não é uma coqueluche, mas condição de paz social. Todos nós ficamos exasperados quando alguém quer impor verdades, especialmente se quem as impõe é o Estado.

No caso da decisão de Alexandre de Moraes, há uma agravante. A pretensa falsidade da narrativa – seja falsa ou não, não cabe ao Judiciário atribuir essa qualificação – foi usada como motivo complementar para decretar a prisão preventiva. Trata-se de explícita confusão de âmbitos e de violação das garantias constitucionais.

A própria ideia de que a convocação de uma vigília crítica ao Judiciário poderia configurar motivo para a prisão preventiva de Jair Bolsonaro confronta-se com o artigo 5.º, XVI da Constituição: “Todos podem reunir-se pacificamente, sem armas, em locais abertos ao público, independentemente de autorização”. Assegurar o cumprimento das decisões judiciais é inteiramente diferente de perseguir quem critica, também coletiva e publicamente, essas decisões judiciais.

Jair Bolsonaro cometeu crimes contra a democracia e, felizmente, seus atos encontraram resistência. Diversas entidades e instituições privadas e públicas, entre elas o STF, foram essenciais para a manutenção do regime democrático e das liberdades civis no País. Se hoje posso advogar resguardado pelas prerrogativas profissionais da advocacia, se hoje posso escrever com liberdade, é também em função de o Supremo não ter se omitido na defesa da Constituição.

No entanto, se queremos construir um caminho de paz, precisamos melhorar a qualidade da prestação jurisdicional. As palavras de uma decisão judicial importam. Sua fundamentação – essa arte de estabelecer, serena e compreensivelmente, as relações entre os fatos e as normas, extraindo seus efeitos jurídicos – pavimenta a legitimidade democrática do Judiciário. Argumentos autoritários esburacam essa via.

A melhor resposta do STF à acusação de uma pretensa ditadura judicial não é prender pessoas nem proibir manifestações. É atuar dentro das regras do jogo. A defesa da democracia exige entender o funcionamento da democracia. O Estado não estabelece o que é a verdade, tampouco persegue quem discorda de sua atuação.

O Estado Democrático de Direito não é inseguro do seu caráter democrático, como se tivesse de recorrer ao uso da força para impor uma versão sobre si mesmo. Se Jair Bolsonaro quer nos deixar estupefatos com sua estupidez, lamentamos, mas é fato da vida. O Judiciário, no entanto, não tem o direito de nos surpreender com arroubos de desrazão.

 

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