Correio Braziliense
O craque não participava de
organizações de esquerda, era apenas um dos maiores atacantes de sua geração e
comemorava seus gols com o punho cerrado
A decisão da Comissão de Anistia de
reconhecer o ex-jogador José Reinaldo de Lima, ídolo do Atlético Mineiro e da
Seleção Brasileira, como vítima da perseguição política da ditadura militar
ilumina uma faceta menos lembrada, porém decisiva, da repressão brasileira: a
violência cotidiana, difusa, que atingia não apenas militantes clandestinos,
mas qualquer cidadão que ousasse romper o enquadramento simbólico e
disciplinador imposto pelo regime.
Reinaldo não conspirava, não participava de organizações de esquerda. Era apenas um dos maiores atacantes de sua geração, um jovem negro, carismático, que comemorava seus gols com o punho cerrado, marca dos movimentos de direitos civis norte-americanos, que simbolizava autoestima, dignidade e autonomia. Para os generais e para a cúpula da antiga Confederação Brasileira de Desportos, aquele gesto era uma mensagem perigosa para os torcedores e demais jogadores.
A perseguição sofrida pelo atacante, agora
reconhecida como violação de direitos pelo Estado brasileiro, revela como a
repressão atuava para além dos porões. Ela se exercia também nos estádios,
convocações para a Seleção, clubes e imprensa esportiva. O atleta foi
observado, advertido, prejudicado, enquadrado. Reinaldo insistiu no gesto,
contrariando o grau de controle social que o regime desejava impor. Para além
do silêncio político, o regime promovia a domesticação simbólica de figuras
públicas capazes de influenciar multidões.
Essa mesma dimensão da repressão, que
escapava às prisões e torturas clandestinas, também é revisitada com força pelo
vitorioso filme O agente secreto, de Kleber Mendonça Filho, que, ontem, foi
proclamado vencedor do New York Film Critics Circle Awards, sendo o seu
protagonista, Wagner Moura, premiado como melhor ator.
Depois de Ainda estou aqui, de Walter Salles
Junior, com Fernanda Torres no papel principal, O agente secreto reinscreve o
Brasil no debate global sobre as cicatrizes do autoritarismo, resgatando a
atmosfera de vigilância e violência institucional que atravessava o cotidiano.
Ao lado de Pixote, Cidade de Deus e Bacurau, também premiados anteriormente, o
longa expressa uma cinematografia que denuncia a permanência da brutalidade de
Estado no cotidiano dos cidadãos.
Essa é uma chave para a compreensão do país
e, também, da violência instalada ainda hoje na sociedade brasileira, dos
grandes centros urbanos aos grotões. Um exemplo dessa violência foi a atuação
da Scuderie Le Cocq, o chamado “esquadrão da morte”. Formado por policiais, o
grupo encarnou a mentalidade do “justiçamento” que deu origem à frase “bandido
bom é bandido morto”, mais tarde popularizada como espécie de mantra da
barbárie urbana, e que está aí, vivíssima, no debate sobre a política de
segurança pública.
Violência difusa
A Scuderie não atuava à margem do Estado, era
fruto de uma política de segurança que legitimava execuções sumárias, apoiada
por parcelas da imprensa e celebrada por segmentos da população. Era o braço
visível de um ecossistema violento que convivia com o braço invisível: o
desaparecimento forçado de opositores políticos, prática que marcou
profundamente a repressão da década de 1970. Para compreender esse sistema, é
necessário enxergar sua raiz profunda: uma tradição secular de violência
estatal no Brasil.
Essa tradição foi magistralmente sintetizada
por Graciliano Ramos em Vidas Secas (José Olympio), na cena em que Fabiano,
homem pobre, trabalhador e analfabeto, é espancado pelo Soldado Amarelo sem
motivo, sem explicação e sem possibilidade de defesa. O protagonista, que mal
domina as palavras, tenta compreender a lógica do acontecido, mas tudo que
encontra é a arbitrariedade da autoridade, o peso brutal da farda e a certeza
silenciosa de que não há justiça para gente como ele.
A violência contra Fabiano é estrutural,
cotidiana, uma engrenagem do poder. Seu espancamento é a metáfora perfeita da
relação histórica entre Estado e povo — sobretudo negros, pobres e
trabalhadores — muito antes da ditadura militar. Esse é o elo perdido entre a anistia
de Reinaldo e a magistral atuação de Wagner Moura.
Essa herança atravessou regimes, atravessou
instituições e se transformou nos anos de chumbo em uma dupla máquina de
repressão: de um lado, os esquadrões da morte que matavam a céu aberto; de
outro, os aparelhos clandestinos que assassinavam no escuro, sequestrando
corpos e memórias. A ditadura não inventou essa violência, aperfeiçoou,
institucionalizou, usou-a a seu favor no combate aos inimigos declarados e aos
imaginários.
Reinaldo foi um desses “inimigos
imaginários”, fabricados por uma lógica que confundia dignidade com subversão.
O caso do atacante reforça que a repressão não foi apenas política: foi também
cultural, simbólica, pedagógica. O Estado buscava moldar comportamentos,
sufocar gestos, controlar a expressão pública.
No futebol, objeto principal do ufanismo
oficial, isso era evidente. Jogadores eram pressionados a encarnar o mito da
“pátria ordeira”. Reinaldo recusou o papel. E pagou por isso. Somente agora,
décadas depois, veio a reparação.

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