Ubiratan Brasil
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO – Caderno 2
Em O Artífice, o sociólogo americano Richard Sennett revela a harmonia primordial entre a mão e a mente
Fazer é pensar. A partir desse pressuposto, o sociólogo americano Richard Sennett estrutura, em O Artífice (tradução de Clóvis Marques), a instigante ideia de que o trabalho manual não industrializado, no passado e no presente, sempre esteve e está conectado a valores éticos. Com isso, desenvolve o raciocínio de que é possível cada um aprender sobre si mesmo através do ato de produzir.
Professor da London School of Economics e um dos mais importantes especialistas da atualidade em temas como classes e cidades, Sennett estuda, com impressionante agudez, o conjunto de transformações sociais ocorridas ao longo dos últimos séculos. O espaço urbano é o ambiente ideal para sua pesquisa, que busca compreender como funciona a sociedade contemporânea. Resultam daí obras como Carne e Pedra, A Corrosão do Caráter, Autoridade e A Cultura do Novo Capitalismo.
Neste O Artífice, Sennett expande o conceito de "artesanato", uma vez que entende o trabalho manual como o melhor termômetro para as reações de satisfação e frustração provocadas pelo desejo de fazer as coisas da melhor maneira possível. Para ele, artesanato está presente tanto nas formas mais rudimentares de se executar um trabalho como no exercício de atividades de maior complexidade, como a medicina, a música e a arquitetura.
"Habilidade artesanal designa um impulso humano básico e permanente, o desejo de um trabalho bem feito por si mesmo", escreve Sennett na apresentação do livro, no qual revela ainda que este é o primeiro de três volumes dedicados à cultura material - o segundo vai abordar a elaboração de rituais para enfrentar a agressão e o fanatismo, enquanto o terceiro pretende explorar as aptidões necessárias para criar e habitar ambientes sustentáveis.
No livro ora lançado no Brasil, o sociólogo parte de um argumento surgido no século 19, quando escritores como John Ruskin e William Morris lamentaram o desaparecimento do artesanato como prática de trabalho, suplantado pelos processos industriais. De Hegel e Marx até uma professora bastante especial de Sennett, ninguém menos do que Hanna Arendt (1906-1975) - uma das pensadoras de língua alemã mais influentes no século 20 -, muitos simpatizaram com a ideia de que o trabalho manual é uma das qualidades do bom cidadão. Daí a certeza de Sennett de que o artesanato não é uma arte extinta, mas que migrou para outros empreendimentos humanos, especialmente aqueles que necessitam de uma forma delicada de cooperação. Ou seja, o esforço que antes era utilizado na construção de uma catedral agora permite o surgimento de sofisticados programas de computador.
O homem iluminista talvez seja, no entender de Sennett, o símbolo do artífice perfeito. E o pensador francês Denis Diderot desponta como exemplo revelador: com os 35 volumes da Enciclopédia, publicados entre 1751 e 1772, ele ensina os leitores a criar abelhas, produzir cidra e curar tabaco. "A Enciclopédia buscava arrancar os leitores de si mesmos e conduzi-los às vidas dos artífices artesanais para em seguida esclarecer a natureza do bom trabalho propriamente dito", escreve.
Sennett observa que o primeiro encontro da modernidade com a força das máquinas gerou uma cultura densa e contraditória. "As máquinas recheavam aquela cornucópia de produtos que começaram a se formar antes. Materialmente mais bem-dotado, o Iluminismo idealizava agora os seres humanos como capazes de se autoafirmar, a ponto de descartar a submissão à tradição", observa. E, mais adiante, conclui: "Uma sólida avaliação da maquinaria é necessária em qualquer boa prática artesanal. Fazer as coisas direito - seja na perfeição funcional ou mecânica - não deve ser uma alternativa quando não nos esclarecer sobre nós mesmos."
A mão e a mente estão intimamente associados: a harmonia entre ambos serve para Sennett relacionar homem e máquina, consciência material e experiência de longo prazo (segundo seus cálculos, são necessárias cerca de 10 mil horas para alguém atingir a mestria em uma atividade). E a unidade entre a mente e o corpo do artífice pode ser encontrada na linguagem expressiva que orienta a ação física. Assim, o ato de cozinhar um frango ou de planejar construções são formas de pensar por meio do fazer, permitindo reconfigurar o mundo material através de um longo processo de metamorfose.
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO – Caderno 2
Em O Artífice, o sociólogo americano Richard Sennett revela a harmonia primordial entre a mão e a mente
Fazer é pensar. A partir desse pressuposto, o sociólogo americano Richard Sennett estrutura, em O Artífice (tradução de Clóvis Marques), a instigante ideia de que o trabalho manual não industrializado, no passado e no presente, sempre esteve e está conectado a valores éticos. Com isso, desenvolve o raciocínio de que é possível cada um aprender sobre si mesmo através do ato de produzir.
Professor da London School of Economics e um dos mais importantes especialistas da atualidade em temas como classes e cidades, Sennett estuda, com impressionante agudez, o conjunto de transformações sociais ocorridas ao longo dos últimos séculos. O espaço urbano é o ambiente ideal para sua pesquisa, que busca compreender como funciona a sociedade contemporânea. Resultam daí obras como Carne e Pedra, A Corrosão do Caráter, Autoridade e A Cultura do Novo Capitalismo.
Neste O Artífice, Sennett expande o conceito de "artesanato", uma vez que entende o trabalho manual como o melhor termômetro para as reações de satisfação e frustração provocadas pelo desejo de fazer as coisas da melhor maneira possível. Para ele, artesanato está presente tanto nas formas mais rudimentares de se executar um trabalho como no exercício de atividades de maior complexidade, como a medicina, a música e a arquitetura.
"Habilidade artesanal designa um impulso humano básico e permanente, o desejo de um trabalho bem feito por si mesmo", escreve Sennett na apresentação do livro, no qual revela ainda que este é o primeiro de três volumes dedicados à cultura material - o segundo vai abordar a elaboração de rituais para enfrentar a agressão e o fanatismo, enquanto o terceiro pretende explorar as aptidões necessárias para criar e habitar ambientes sustentáveis.
No livro ora lançado no Brasil, o sociólogo parte de um argumento surgido no século 19, quando escritores como John Ruskin e William Morris lamentaram o desaparecimento do artesanato como prática de trabalho, suplantado pelos processos industriais. De Hegel e Marx até uma professora bastante especial de Sennett, ninguém menos do que Hanna Arendt (1906-1975) - uma das pensadoras de língua alemã mais influentes no século 20 -, muitos simpatizaram com a ideia de que o trabalho manual é uma das qualidades do bom cidadão. Daí a certeza de Sennett de que o artesanato não é uma arte extinta, mas que migrou para outros empreendimentos humanos, especialmente aqueles que necessitam de uma forma delicada de cooperação. Ou seja, o esforço que antes era utilizado na construção de uma catedral agora permite o surgimento de sofisticados programas de computador.
O homem iluminista talvez seja, no entender de Sennett, o símbolo do artífice perfeito. E o pensador francês Denis Diderot desponta como exemplo revelador: com os 35 volumes da Enciclopédia, publicados entre 1751 e 1772, ele ensina os leitores a criar abelhas, produzir cidra e curar tabaco. "A Enciclopédia buscava arrancar os leitores de si mesmos e conduzi-los às vidas dos artífices artesanais para em seguida esclarecer a natureza do bom trabalho propriamente dito", escreve.
Sennett observa que o primeiro encontro da modernidade com a força das máquinas gerou uma cultura densa e contraditória. "As máquinas recheavam aquela cornucópia de produtos que começaram a se formar antes. Materialmente mais bem-dotado, o Iluminismo idealizava agora os seres humanos como capazes de se autoafirmar, a ponto de descartar a submissão à tradição", observa. E, mais adiante, conclui: "Uma sólida avaliação da maquinaria é necessária em qualquer boa prática artesanal. Fazer as coisas direito - seja na perfeição funcional ou mecânica - não deve ser uma alternativa quando não nos esclarecer sobre nós mesmos."
A mão e a mente estão intimamente associados: a harmonia entre ambos serve para Sennett relacionar homem e máquina, consciência material e experiência de longo prazo (segundo seus cálculos, são necessárias cerca de 10 mil horas para alguém atingir a mestria em uma atividade). E a unidade entre a mente e o corpo do artífice pode ser encontrada na linguagem expressiva que orienta a ação física. Assim, o ato de cozinhar um frango ou de planejar construções são formas de pensar por meio do fazer, permitindo reconfigurar o mundo material através de um longo processo de metamorfose.
Nenhum comentário:
Postar um comentário