DEU EM O GLOBO
Quando os porta-vozes do governo, oficiais e oficiosos, alegam que o Programa Nacional de Direitos Humanos é apenas uma continuação de um projeto iniciado em 1996 sob o governo Fernando Henrique Cardoso, estão dizendo a verdade, embora queiram com ela encobrir o caráter autoritário do plano apresentado no final do ano passado. O caráter de continuidade do governo tucano, que tanto incomoda os petistas, não foi nem mesmo esquecido quando do lançamento do programa que, além de ser chamado de III Programa Nacional dos Direitos Humanos, deu direito a um pronunciamento, através de vídeo, do autor do I Programa em 1996, o hoje secretário de Direitos Humanos de São Paulo, ex-ministro da Justiça José Gregori
Foi ele quem sugeriu que o governo Fernando Henrique Cardoso, ao lançar o segundo plano, em 2002, ampliasse o seu escopo, adaptando-o à Conferência de Viena de 1993 na qual todos os países, através da ONU, estabeleceram o princípio de que os direitos humanos abrangem, além dos direitos civis e políticos — que foram a base do primeiro plano — os aspectos sociais, culturais e econômicos, e constituem uma unidade.
Como os dois são governos de esquerda — embora o PT trabalhe há anos para empurrar o PSDB para a direita do espectro político brasileiro —, é natural que tenham visões semelhantes sobre questões tão díspares quanto corretamente unificadas sob o guarda-chuva dos Direitos Humanos como o aborto, a proteção das minorias, os meios de comunicação ou a agricultura familiar.
Só que no plano do PT há um viés ideológico e um autoritarismo que não estão presentes nos planos anteriores, embora os temas sejam semelhantes.
O que parece é que, enquanto nos planos tucanos a preocupação com as palavras foi grande no sentido de encontrar os caminhos do consenso e não criar inviabilidades, no atual plano, que tanta polêmica está causando, houve uma tentativa de usar a linguagem para estabelecer diretrizes ideológicas.
O governo tucano, quando elaborou o Primeiro Programa, havia acabado de fazer a Lei dos Desaparecidos, que era o reconhecimento das mortes de pessoas desaparecidas em razão de participação política na luta contra a ditadura, pela qual o Estado brasileiro reconheceu sua responsabilidade e concedeu indenização aos familiares das vítimas.
Para sua elaboração, houve momentos de negociações com militares, tanto da parte do então ministro Nelson Jobim quanto da de José Gregori, já então secretário nacional de Direitos Humanos.
A Comissão reconheceu cerca de 450 desaparecidos e mortos pela repressão política, entre eles os guerrilheiros Lamarca e Marighella, o que demandou cuidados especiais.
Na elaboração do Programa dos Direitos Humanos, os cuidados com a questão militar foram grandes, pois sabiam onde as feridas estavam abertas.
O que não impediu, no entanto, que, em decorrência do programa, avanços importantes fossem dados, como a transferência para a justiça comum dos crimes dolosos contra a vida praticados por policiais militares, o que permitiu o julgamento de policiais militares em casos como os massacres de Carandiru, Corumbiara e Eldorado dos Carajás, e a tipificação do crime de tortura, marco para o combate contra essa ação criminosa do Estado no Brasil.
Gregori hoje continua convencido de que, do ponto de vista do histórico da anistia no Brasil, e até lembrando frases que eram corriqueiras nos comícios da época — “colocar pedra em cima”, “um recomeço” e “reconciliação” —, a anistia era recíproca.
Por razões politicamente interessante para eles, analisa, os militares aceitaram que o então ministro da Justiça Petrônio Portella dialogasse com a oposição para chegar a um texto que fosse aceitável pelas duas partes.
Já o ex-deputado federal e advogado Marcelo Cerqueira, que participou à época de algumas negociações a mando de Ulysses Guimarães, acha que não: “Embora o sentimento geral da época fosse a anistia recíproca, ela não se deu”, diz Cerqueira, que lembra uma frase do jurista Aliomar Baleeiro, que dizia que a vontade do legislador é para ser interpretada por psicólogos e não por juristas.
Segundo a visão de Marcelo Cerqueira, independentemente de convenções internacionais, a Constituição não recepcionou a tortura como crime imprescritível, cabendo às famílias das vítimas o processo por improbidade — uso de aparelho de Estado para o crime — este sim imprescritível.
Para ele, a verdadeira questão é “o direito de de as famílias dos desaparecidos enterrarem os seus mortos”, e por isso os arquivos devem ser abertos e casos como onde foram enterrados os corpos dos guerrilheiros do Araguaia devem ser esclarecidos, deixandose para o Supremo a decisão jurídica sobre a abrangência da anistia e a prescritibilidade dos crimes de tortura.
Voltando ao Programa de Direitos Humanos, mesmo a maneira de elaboração deles foi diferente, neste e nos governos anteriores, denotando cuidados e intenções distintas.
O Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo, dirigido na ocasião por Paulo Sérgio Pinheiro, que também participou da elaboração desse último plano, consolidou as propostas das diversas instâncias em que foram discutidas, mas havia um texto básico elaborado pelo governo.
Agora, o vezo assembleísta do governo petista parece ter invertido as prioridades, transmitindo diretamente as decisões das assembleias para o plano, sem o cuidado político que os temas abordados exigiam.
Embora de ramos da mesma família da esquerda política, e mesmo que o exercício do poder tenha levado o governo Lula a se aproximar em muitos setores mais da social-democracia do que se poderia prever, a visão de mundo de setores da esquerda radical encrustados no governo ainda prevalece em momentos como esse.
Em vez da proteção dos direitos do cidadão, o III Programa Nacional de Direitos Humanos reflete muito mais um desejo de tutela do Estado sobre o cidadão.
Quando os porta-vozes do governo, oficiais e oficiosos, alegam que o Programa Nacional de Direitos Humanos é apenas uma continuação de um projeto iniciado em 1996 sob o governo Fernando Henrique Cardoso, estão dizendo a verdade, embora queiram com ela encobrir o caráter autoritário do plano apresentado no final do ano passado. O caráter de continuidade do governo tucano, que tanto incomoda os petistas, não foi nem mesmo esquecido quando do lançamento do programa que, além de ser chamado de III Programa Nacional dos Direitos Humanos, deu direito a um pronunciamento, através de vídeo, do autor do I Programa em 1996, o hoje secretário de Direitos Humanos de São Paulo, ex-ministro da Justiça José Gregori
Foi ele quem sugeriu que o governo Fernando Henrique Cardoso, ao lançar o segundo plano, em 2002, ampliasse o seu escopo, adaptando-o à Conferência de Viena de 1993 na qual todos os países, através da ONU, estabeleceram o princípio de que os direitos humanos abrangem, além dos direitos civis e políticos — que foram a base do primeiro plano — os aspectos sociais, culturais e econômicos, e constituem uma unidade.
Como os dois são governos de esquerda — embora o PT trabalhe há anos para empurrar o PSDB para a direita do espectro político brasileiro —, é natural que tenham visões semelhantes sobre questões tão díspares quanto corretamente unificadas sob o guarda-chuva dos Direitos Humanos como o aborto, a proteção das minorias, os meios de comunicação ou a agricultura familiar.
Só que no plano do PT há um viés ideológico e um autoritarismo que não estão presentes nos planos anteriores, embora os temas sejam semelhantes.
O que parece é que, enquanto nos planos tucanos a preocupação com as palavras foi grande no sentido de encontrar os caminhos do consenso e não criar inviabilidades, no atual plano, que tanta polêmica está causando, houve uma tentativa de usar a linguagem para estabelecer diretrizes ideológicas.
O governo tucano, quando elaborou o Primeiro Programa, havia acabado de fazer a Lei dos Desaparecidos, que era o reconhecimento das mortes de pessoas desaparecidas em razão de participação política na luta contra a ditadura, pela qual o Estado brasileiro reconheceu sua responsabilidade e concedeu indenização aos familiares das vítimas.
Para sua elaboração, houve momentos de negociações com militares, tanto da parte do então ministro Nelson Jobim quanto da de José Gregori, já então secretário nacional de Direitos Humanos.
A Comissão reconheceu cerca de 450 desaparecidos e mortos pela repressão política, entre eles os guerrilheiros Lamarca e Marighella, o que demandou cuidados especiais.
Na elaboração do Programa dos Direitos Humanos, os cuidados com a questão militar foram grandes, pois sabiam onde as feridas estavam abertas.
O que não impediu, no entanto, que, em decorrência do programa, avanços importantes fossem dados, como a transferência para a justiça comum dos crimes dolosos contra a vida praticados por policiais militares, o que permitiu o julgamento de policiais militares em casos como os massacres de Carandiru, Corumbiara e Eldorado dos Carajás, e a tipificação do crime de tortura, marco para o combate contra essa ação criminosa do Estado no Brasil.
Gregori hoje continua convencido de que, do ponto de vista do histórico da anistia no Brasil, e até lembrando frases que eram corriqueiras nos comícios da época — “colocar pedra em cima”, “um recomeço” e “reconciliação” —, a anistia era recíproca.
Por razões politicamente interessante para eles, analisa, os militares aceitaram que o então ministro da Justiça Petrônio Portella dialogasse com a oposição para chegar a um texto que fosse aceitável pelas duas partes.
Já o ex-deputado federal e advogado Marcelo Cerqueira, que participou à época de algumas negociações a mando de Ulysses Guimarães, acha que não: “Embora o sentimento geral da época fosse a anistia recíproca, ela não se deu”, diz Cerqueira, que lembra uma frase do jurista Aliomar Baleeiro, que dizia que a vontade do legislador é para ser interpretada por psicólogos e não por juristas.
Segundo a visão de Marcelo Cerqueira, independentemente de convenções internacionais, a Constituição não recepcionou a tortura como crime imprescritível, cabendo às famílias das vítimas o processo por improbidade — uso de aparelho de Estado para o crime — este sim imprescritível.
Para ele, a verdadeira questão é “o direito de de as famílias dos desaparecidos enterrarem os seus mortos”, e por isso os arquivos devem ser abertos e casos como onde foram enterrados os corpos dos guerrilheiros do Araguaia devem ser esclarecidos, deixandose para o Supremo a decisão jurídica sobre a abrangência da anistia e a prescritibilidade dos crimes de tortura.
Voltando ao Programa de Direitos Humanos, mesmo a maneira de elaboração deles foi diferente, neste e nos governos anteriores, denotando cuidados e intenções distintas.
O Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo, dirigido na ocasião por Paulo Sérgio Pinheiro, que também participou da elaboração desse último plano, consolidou as propostas das diversas instâncias em que foram discutidas, mas havia um texto básico elaborado pelo governo.
Agora, o vezo assembleísta do governo petista parece ter invertido as prioridades, transmitindo diretamente as decisões das assembleias para o plano, sem o cuidado político que os temas abordados exigiam.
Embora de ramos da mesma família da esquerda política, e mesmo que o exercício do poder tenha levado o governo Lula a se aproximar em muitos setores mais da social-democracia do que se poderia prever, a visão de mundo de setores da esquerda radical encrustados no governo ainda prevalece em momentos como esse.
Em vez da proteção dos direitos do cidadão, o III Programa Nacional de Direitos Humanos reflete muito mais um desejo de tutela do Estado sobre o cidadão.
Nenhum comentário:
Postar um comentário