DEU EM O ESTADO DE S. PAULO
Termina a primeira década do século 21. Sob a ótica das relações internacionais, o contraste entre esta década e os anos 90 do século 21 não poderia ser maior. Os anos que se seguiram à queda do Muro de Berlim e ao colapso do socialismo alimentaram a hipótese de um mundo que convergiria em torno de políticas domésticas e regimes internacionais de corte liberal. O triunfo do capitalismo e da democracia prenunciava algo que Fukuyama identificou como o "fim da história". Ledo engano.
A primeira década do novo século começou sob o signo do atentado de 11 de setembro de 2001 e termina sob os impactos duradouros da crise econômica desencadeada na segunda metade de 2008. Entre os dois eventos, o que caracterizou a década foi a emergência de um cenário em quase tudo diferente do que se previa nos anos 90. A década que termina assistiu à erosão, nos países centrais do capitalismo, do consenso liberal que respaldou a ordem econômica global vigente a partir da 2ª Guerra Mundial. A emergência da China como ator de primeira grandeza na economia internacional acelerou e aprofundou este processo, que desembocou em questionamento do sistema multilateral de governança e da própria globalização - cada vez mais percebida, na opinião pública dos países desenvolvidos, como fonte de insegurança econômica e política. Descrédito do liberalismo, ressurgimento do nacionalismo econômico e emergência de novos atores nacionais alavancados por modelos diversos de capitalismo de Estado são os traços dominantes do ambiente político em que hoje evolui o sistema internacional.
Nada disso, no entanto, impediu que, ao longo da década, a globalização se aprofundasse, em sua dimensão microeconômica. Desenvolveram-se novos canais e modalidades de interdependência, muitos deles vinculados à emergência chinesa: as exportações de commodities latino-americanas para a China, as crescentemente diversificadas relações econômicas entre a China e a África, sem falar na relação macroeconômica que vincula EUA e China.
A desenvoltura demonstrada pelos vetores da globalização econômica e financeira perante a um ambiente político que lhes é crítico, se não refratário, nos países líderes do capitalismo, não deixa de surpreender. Não é razoável esperar que esta configuração tenha a vida longa, especialmente no cenário que prevalecerá nos primeiros anos da nova década. Nesse cenário, os países desenvolvidos terão crescimento anêmico, o dinamismo econômico estará concentrado nos emergentes e a crise de legitimidade do sistema multilateral de governança não será superada. A hipótese de que, desse cenário, emergirá naturalmente uma ordem global multipolar é frágil: como observam Bremmer e Roubini em recente artigo, os principais concorrentes dos EUA estarão muito ocupados com problemas domésticos e em suas fronteiras para assumir responsabilidades internacionais significativas.
Uma ordem global "não polar" seria a resultante dessas evoluções, reduzindo incentivos para a difícil busca de soluções cooperativas em escala internacional (vide o G-20) e ampliando pressões para a adoção de políticas nacionais de proteção do emprego doméstico e "exportação" dos custos dos ajustes a fazer. A trajetória de acumulação de tensões domésticas e internacionais relacionadas à crescente interdependência e competição entre as economias - característica da década que termina - seguirá seu curso e se intensificará.
O ambiente político acabará por cobrar um preço à globalização. Como isso se dará e quais os seus efeitos sobre uma ordem global em transição são questões em aberto, mas a simples perspectiva desta "cobrança" não dá margem para otimismo. Não há, porém, nenhum desfecho inelutável para essa evolução, nem ela nos leva necessariamente aos piores cenários de crise e conflito internacional. Os principais players da economia e da política internacional - especialmente China e emergentes - ainda precisam muito da estabilidade e do crescimento global para encaminhar sérios problemas domésticos e afirmar-se regionalmente.
Diretor do Centro de Estudos de Integração e Desenvolvimento
Termina a primeira década do século 21. Sob a ótica das relações internacionais, o contraste entre esta década e os anos 90 do século 21 não poderia ser maior. Os anos que se seguiram à queda do Muro de Berlim e ao colapso do socialismo alimentaram a hipótese de um mundo que convergiria em torno de políticas domésticas e regimes internacionais de corte liberal. O triunfo do capitalismo e da democracia prenunciava algo que Fukuyama identificou como o "fim da história". Ledo engano.
A primeira década do novo século começou sob o signo do atentado de 11 de setembro de 2001 e termina sob os impactos duradouros da crise econômica desencadeada na segunda metade de 2008. Entre os dois eventos, o que caracterizou a década foi a emergência de um cenário em quase tudo diferente do que se previa nos anos 90. A década que termina assistiu à erosão, nos países centrais do capitalismo, do consenso liberal que respaldou a ordem econômica global vigente a partir da 2ª Guerra Mundial. A emergência da China como ator de primeira grandeza na economia internacional acelerou e aprofundou este processo, que desembocou em questionamento do sistema multilateral de governança e da própria globalização - cada vez mais percebida, na opinião pública dos países desenvolvidos, como fonte de insegurança econômica e política. Descrédito do liberalismo, ressurgimento do nacionalismo econômico e emergência de novos atores nacionais alavancados por modelos diversos de capitalismo de Estado são os traços dominantes do ambiente político em que hoje evolui o sistema internacional.
Nada disso, no entanto, impediu que, ao longo da década, a globalização se aprofundasse, em sua dimensão microeconômica. Desenvolveram-se novos canais e modalidades de interdependência, muitos deles vinculados à emergência chinesa: as exportações de commodities latino-americanas para a China, as crescentemente diversificadas relações econômicas entre a China e a África, sem falar na relação macroeconômica que vincula EUA e China.
A desenvoltura demonstrada pelos vetores da globalização econômica e financeira perante a um ambiente político que lhes é crítico, se não refratário, nos países líderes do capitalismo, não deixa de surpreender. Não é razoável esperar que esta configuração tenha a vida longa, especialmente no cenário que prevalecerá nos primeiros anos da nova década. Nesse cenário, os países desenvolvidos terão crescimento anêmico, o dinamismo econômico estará concentrado nos emergentes e a crise de legitimidade do sistema multilateral de governança não será superada. A hipótese de que, desse cenário, emergirá naturalmente uma ordem global multipolar é frágil: como observam Bremmer e Roubini em recente artigo, os principais concorrentes dos EUA estarão muito ocupados com problemas domésticos e em suas fronteiras para assumir responsabilidades internacionais significativas.
Uma ordem global "não polar" seria a resultante dessas evoluções, reduzindo incentivos para a difícil busca de soluções cooperativas em escala internacional (vide o G-20) e ampliando pressões para a adoção de políticas nacionais de proteção do emprego doméstico e "exportação" dos custos dos ajustes a fazer. A trajetória de acumulação de tensões domésticas e internacionais relacionadas à crescente interdependência e competição entre as economias - característica da década que termina - seguirá seu curso e se intensificará.
O ambiente político acabará por cobrar um preço à globalização. Como isso se dará e quais os seus efeitos sobre uma ordem global em transição são questões em aberto, mas a simples perspectiva desta "cobrança" não dá margem para otimismo. Não há, porém, nenhum desfecho inelutável para essa evolução, nem ela nos leva necessariamente aos piores cenários de crise e conflito internacional. Os principais players da economia e da política internacional - especialmente China e emergentes - ainda precisam muito da estabilidade e do crescimento global para encaminhar sérios problemas domésticos e afirmar-se regionalmente.
Diretor do Centro de Estudos de Integração e Desenvolvimento
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