Quando o Comitê de Política Monetária (Copom) surpreendeu o mercado financeiro ao iniciar o ciclo de redução da Selic, várias análises questionaram se o governo tinha abandonado o regime de metas de inflação, passando a perseguir meta de crescimento econômico. Não vejo incompatibilidade de perseguir ambas as metas, como faz o FED (banco central americano).
O regime de meta de inflação nasceu após período de turbulência na passagem do câmbio fixo para o flutuante, em meio a uma crise fiscal e cambial aguda, tendo o governo de bater na porta do FMI solicitando um empréstimo de US$ 41 bilhões para não ter de dar o calote na dívida externa. O regime foi implantado por Arminio Fraga, que presidiu o Banco Central (BC) a partir de março de 1999. Naquele mês, a Selic atingiu o recorde de 45%, marcando o início desse regime. Ela já era alta desde a primeira reunião do Copom, em julho de 1996. De lá até 1999 ficou na média de 24%, ou seja, mais do dobro da atual, e só foi ficar abaixo de 15% em julho de 2006.
O que caracterizou esse regime foi a utilização exclusiva da Selic para o controle da inflação. Assim, inaugurou-se nova justificativa para a continuidade do uso de taxas de juros elevadas para controlar a inflação. A utilização da Selic elevada, durante todos esses anos, foi o que deu sustentação ao Plano Real, mantendo o real apreciado para atrair os especuladores externos com ganhos seguros em cima dos títulos do governo. O ingresso desses dólares barateia as importações, servindo como barreira ao reajuste de preços internos. É a política conhecida como âncora cambial.
Uma consequência dessa política foi agravar o rombo das contas externas, que ocorreu durante 1995 a 2002, com uma perda acumulada de US$ 168 bilhões. Nesse período, a Selic média foi 21,5%. A partir de 2008, novos rombos passaram a ocorrer, tendo atingido US$ 100 bilhões até 2010 e com previsão de atingir este ano US$ 55 bilhões!
Outra consequência danosa ocorreu nas contas públicas. O déficit registrado de 1995 a 2002 foi de 7,0% do PIB, por conta de um superávit primário de 1,6% do PIB insuficiente para pagar a conta de juros, que atingiu 8,6% do PIB! A dívida líquida do setor público saltou de 29% do PIB em 1995 para 60% em 2002. Com maior crescimento econômico e superávit primário, aliados à Selic menor a partir de 2007, foi reduzida para 37,2% ao final de setembro.
Face aos danos causados, não dá mais para continuar a Selic no nível atual, que é o triplo do segundo colocado no ranking mundial.
Utilizando dados dos balancetes de janeiro/2000 a outubro/2009 de bancos com carteira de crédito ativa, estudo do BC de maio último constatou que não foram encontradas relações relevantes entre o spread e Selic, ou seja, a Selic não influi na taxa de juros ao mercado, contrariando a tese que influi sobre a demanda.
Excluído o caminho danoso da artificialização do câmbio, a Selic não serve para controlar a inflação, pois não segura a demanda, nem serve para formar as expectativas de preços, que são influenciadas pela inflação passada, e não pela sua previsão sujeita a erro. Assim, carece de qualquer sentido a determinação da Selic pelo Copom. Se esse sistema não serve para atuar sobre a inflação, qual poderia ser?
Controle da inflação. Um sistema alternativo consiste em definir a meta de inflação para os próximos doze meses (e não para o ano calendário) e sua banda de tolerância de mais ou menos dois pontos dimensionada para absorver os choques de oferta. Para um ataque eficaz, a gestão da inflação deve atuar não só sobre a demanda, como sempre foi, mas também sobre a oferta. Para regular a demanda, o principal é a gestão do consumo, responsável por 60% dela. E isso se faz via medidas macroprudenciais que regulam o crédito, como as que foram usadas no final de 2010.
Naquela ocasião, foi diagnosticado que estava ocorrendo uma inadimplência crescente com o prazo de financiamento dos automóveis. Assim, foram feitas exigências aos bancos e consumidores para reduzir e encarecer as operações de crédito com prazos superiores a 24 meses. Os resultados atingiram os objetivos traçados pelo BC.
Quanto à oferta interna, deve-se estimulá-la via: a) desonerações tributárias em bens de consumo popular e; b) crédito para as empresas a taxas de juros mais reduzidas, especialmente através das instituições oficiais. Isso reduz os custos tributários e financeiros e alivia o capital de giro, especialmente para as micro, pequenas e médias empresas.
Empresas que têm poder de fixar preços, como a Vale, devem ser controladas para não contaminar a cadeia de custos das empresas e majorar preços aos consumidores. O mesmo vale para os preços administrados, que devem ter um acompanhamento mais rigoroso e transparente do que vem ocorrendo.
Escapa ao controle o componente externo da inflação (commodities, alimentos e demais bens). Mas as perspectivas são favoráveis por causa da crise internacional, que vem atenuando o consumo nos países desenvolvidos, com reflexo também nos países emergentes.
Além do controle proposto, creio que o maior antídoto contra a inflação, infelizmente, é a própria inflação, por reduzir diariamente o poder aquisitivo da maior parte da população, que só é recuperado parcialmente mais à frente por ocasião dos reajustes salariais e, assim mesmo sem atingir a maior parte dos trabalhadores, que não pertencem às categorias mais organizadas e nem têm poder de negociação salarial. Em consequência, contrariando previsões alarmistas de elevação inflacionária devido às categorias organizadas, a renda já caiu 1,8% em setembro na comparação com agosto.
Resumindo: ao invés do controle tipo samba de uma nota só, da Selic, deve-se atuar sobre a inflação por um conjunto de ações que interferem na oferta e demanda da economia. O BC deixa de ser o único responsável pela inflação, passando-a para a equipe econômica (Fazenda, Planejamento e BC), órgãos que compõem o Conselho Monetário Nacional (CMN), que é quem define a meta de inflação.
O mais importante com a redução da Selic é a economia que o País terá com as despesas com juros, que pode alcançar R$ 120 bilhões ou 3% do PIB! Como faltam recursos para atender a demanda social e a infraestrutura, a redução dessas despesas irá proporcionar uma saída que não tem sido possível obter com a redução de outras despesas, tensionadas por deficiências de gestão, pressões do Judiciário e por fatores políticos advindos do Congresso.
O regime de metas da inflação é necessário para sinalizar o compromisso do governo com o controle da inflação. O que está errado no atual regime é o de usar a Selic como o instrumento para o controle inflacionário. A questão inflacionária merece um combate amplo, para ser eficaz, e, para isso, várias frentes de atuação são necessárias. É preciso que o governo avance nessa direção, se quiser fortalecer os fundamentos macroeconômicos e garantir um desenvolvimento econômico e social sustentável.
Mestre em Finanças Públicas pela FGV
FONTE: O ESTADO DO S. PAULO
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