Em sua última entrevista, durante um café da manhã com jornalistas que cobrem o Palácio do Planalto, a presidente Dilma Rousseff usou, ao longo de 67 minutos, apenas duas vezes a expressão "eu considero".
Na entrevista que concedeu ao "Jornal Nacional" durante o primeiro turno da campanha presidencial, a então candidata usou a expressão uma vez a cada quatro minutos. No último debate no segundo turno da campanha, o "eu considero" apareceu a cada dois minutos de sua fala.
Com a expressão, a candidata oferecia um contraponto aos oito anos da era "nunca antes na história desse país". Saíam as certezas estabelecidas e entravam considerações a serem ponderadas.
A mudança de tom ajudava a dar moto-próprio à candidata. Também servia para refrear a imagem de arrogância que a perseguia e lhe oferecia uma pausa para organizar argumentos num discurso que ainda carecia de fluidez.
País começa a querer se despir de suas ambigüidades
A presidente que, depois de um ano, abandonou a repetição contínua de seu salvo-conduto parece mais segura de que construiu uma imagem para além da sombra do antecessor.
Para consumo público, a imagem tem o "olhar feminino" de que falou na entrevista: do azulejo na cozinha do "Minha Casa Minha Vida" à pressa no combate ao crack.
Mas a principal mudança nos seus 12 meses de governo é na economia, tema em que, como costuma dizer, é vista como dura porque cercada de homens meigos.
Na entrevista-balanço a presidente foi clara sobre a margem de manobra que o país ainda tem na política monetária como vantagem comparativa em relação a um mundo que já jogou os juros no chão mas não reverteu a crise.
A tentativa de mudar o paradigma dos juros altos é a mais alta aposta de Dilma para legitimar um mandato cuja conquista ainda é creditada na conta de Luiz Inácio Lula da Silva.
A saída de Antonio Palocci enfraqueceu as resistências internas no governo à mudança e deu menos ambiguidades à política monetária. Na queda de braço com o mercado, que se rebelou por ter sido surpreendido pelo Copom, o agravamento da crise europeia mostrou que se houve algum erro na redução de juros foi pela demora com que ocorreu.
Com a mudança no patamar de juros, a presidente pretende radicalizar a ampliação do mercado consumidor e cumprir sua principal promessa de campanha, a de um Brasil sem miséria.
Para isso, se a batalha dos juros parece estar sob controle, a dos gastos do governo ainda está no início - se é que algum dia vai ter fim.
Essa ampliação da classe média projetada por Dilma não vai acontecer enquanto uma parcela importante dos gastos do governo continuar a garantir que funcionários públicos tenham salário e aposentadoria tão distintos da maioria.
O fracasso em colocar em pauta de votação o fundo de previdência dos servidores - primeiro capítulo para a limitação das aposentadorias - foi um indicativo de que a batalha será longa. Mas a presidente tem mais chances de dobrar o PT e seus aliados no tema - especialmente se garantir sua participação no conselho de administração desses fundos - do que de enquadrar a nata do funcionalismo que se abriga na magistratura.
A discussão se o Orçamento vai ou não validar o reajuste da magistratura é apenas a ponta mais aparente de um embate que afeta o desenho das alianças do poder.
Para levar a cabo o ajuste fiscal com que pretende dar consistência à política monetária, Dilma sinaliza que pretende se fiar nas recomendações sobre a eficiência da máquina pública que lhe são feitas pelo empresário Jorge Gerdau.
Esse trato da máquina pública atinge os muitos aliados do governo. Entre os dois maiores, no entanto, PT e PMDB, é este último que parece ter mais a perder.
Ainda que os petistas evoluam como aprendizes pemedebistas no loteamento da máquina, ainda dispõem de uma base social que lhes garante parte de sua sustentação eleitoral.
Já o PMDB, que não tem exatamente um eleitor para chamar de seu, pagará um preço mais alto se as recomendações de Gerdau forem levadas à risca.
Se o enxugamento da máquina ainda é uma ameaça, o ajuste fiscal é real. E em parte explica o aumento de tensões e disputas internas que eclodiram na demissão em série de ministros. Por isso, a Esplanada deve esperar por mais turbulências em 2012. Não há sinais de que o governo vai afrouxar as rédeas do gasto enquanto a crise internacional der gás ao discurso.
A continuidade do ajuste, o enxugamento da máquina e a simpatia da opinião pública pelo discurso da presidente de intolerância com a corrupção reduzem a margem de manobra dos partidos, PMDB à frente.
E, com isso, diminui também o apoio incondicional dos aliados ao governo. Como mostrou reportagem de Caio Junqueira (Valor, 19/12), ainda que Dilma tenha uma base política confortável, é a primeira vez, em quase 20 anos, que a disciplina dos partidos aliados cai em primeiro ano de governo.
Se os partidos permanecerem com margem de manobra reduzida pelo Executivo, é de se esperar que não queiram abrir nova frente de embates com o Judiciário.
Pela atuação decisiva do PMDB no adiamento do projeto que define as competências do CNJ e o fortaleceria na queda de braço que hoje se trava no Supremo, o partido parece ter escolhido seu aliado preferencial nos futuros embates com o Executivo.
Foi entre os pemedebistas que se concentrou o apoio mais expressivo a que a magistratura tivesse um reajuste superior àquele que a presidente queria conceder.
Não parece coincidência que o ano se encerre com a convergência entre Dilma Rousseff e a corregedora do Conselho Nacional de Justiça, Eliana Calmon. A titular do CNJ ontem defendeu o direito de investigar magistrados cuja movimentação financeira foi considerada atípica pelas autoridades monetárias, fiscalização a que todos os brasileiros estão sujeitos pela lei.
Por razões distintas, ambas têm nas prerrogativas do Judiciário obstáculos à missão de que se dizem imbuídas. É o Legislativo que tem a incumbência constitucional de desempatar esse jogo. Não o fará se apostar que num Brasil que começa a querer se despir de suas ambiguidades, a salvação é ser amigo do juiz.
FONTE: VALOR ECONÔMICO
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