Melhor seria que fosse diferente. Mas a história mostra que segundo turno
não permite nada mais sofisticado que a força bruta, a passionalidade e a
desqualificação do oponente. Quem está atrás força passagem e agride com as
armas de que julga dispor; quem está à frente fecha o caminho, administra a
vantagem defendendo-se com o ataque. No foco dos estrategistas, está a
imobilização do adversário; impedir que o outro amplie demais os votos de
primeiro turno.
A diminuição de alternativas, a paixão nas ruas e a virulência na TV são
elementos para que o eleitor entre no jogo emocional, pouco ponderado. A
disputa assume ares de uma final de campeonato cheia de fúria, visceral:
torcedores manifestam-se de um modo tão rude quanto explosivo. Pingo vira
letra! O eleitor observa tudo e fará sua escolha pelo "menos ruim",
não exatamente pelo melhor. Perde-se qualidade no já escasso debate
programático. Bom? Ruim? Simplesmente assim!
Mas é preciso ter o sentido de medida das coisas: não se pode passar do
ponto, confinar a si mesmo, tornar-se refém da ousadia; coragem é uma coisa,
temeridade é outra. Indiscutível que segundo turno é batalha que busca aumentar
a rejeição do rival. Contudo, mesmo nesse afã, deve-se cuidar para não aumentar
a própria rejeição. Sobretudo, é arriscado investir em temas morais, pois podem
despertar reações contrárias e se voltar contra quem os mobilizou.
Ninguém, por exemplo, parece favorável ao aborto - pode-se ser a favor de
sua descriminalização, mas não há quem o defenda como desejável. É uma
contingência eticamente aceitável ou não; depende de crenças e valores. Colocá-lo
sobre a mesa da eleição tangencia obscurantismos e retrocessos, enfraquece sua
importância como assunto de saúde pública. Desperta embates cujo oportunismo
pode suscitar revolta.
Igualmente, isso serve para questões relacionadas às opções sexuais. Majoritariamente,
a sociedade não enxerga o tema como questão pública e, naturalmente, não admite
a apologia das escolhas íntimas de cada um. Mas tampouco aprova ou é
indiferente à homofobia: a intolerância não condiz com nosso caráter. Ela
sempre foi punida pelo eleitor - o PT dos velhos tempos, de outras
intolerâncias, por exemplo, confinava-se ao gueto.
Mais razoável, então, é circunscrever questões desse tipo ao campo dos
direitos individuais, garantindo a natural diversidade social e a liberdade dos
indivíduos. Temáticas assim delicadas exigem uma sofisticadíssima compreensão
por parte do eleitor, mas sua percepção não captura nuances, nem considera
detalhes. É um risco colocá-las no contexto emocional da disputa política, de
modo passional.
A decisão, desde sempre discutível, de fazê-lo exigiria engenho e arte
comunicativos; perspicácia política. Expressar com perfeição a crítica que se
faz, quando ela de fato existir. Imaginar que não transborde de um público
específico a quem se quer atrair - evangélicos, no caso - para outro mais amplo
e, desse modo, que não assuma sentido diverso do pretendido é abrir a porta
para que a esperteza coma o esperto.
Este parece ser o principal erro de José Serra: assemelhar-se aos equívocos
da eleição presidencial - da qual, imaginava-se, tiraria lições. Passou do
ponto, e isso o prejudica. Ao sentir o prejuízo, tentou se descolar do enredo
mas já era tarde: sua campanha se contaminou, tornando-se presa de uma
armadilha que, se não foi tramada por ele, tinha como premissa favorecê-lo.
Em vista disso, deu recibo, perdeu elegância e humor: enfrentou jornalistas
e de forma estapafúrdia passou a apontar o vulto de José Dirceu como
responsável por tudo de ruim que o cerca. Malha, hoje, o Judas que morreu
ontem. Paradoxalmente, favorece o adversário. Em política, explicar-se é perder
terreno. É extraordinário que, sozinho, candidato tão experiente consiga se
complicar assim. Os erros de Serra têm sido os maiores aliados de Fernando
Haddad.
Fonte: O Estado de S Paulo
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