A definição do que seja crime de formação de quadrilha é a última discussão teórica
do plenário do STF antes da definição dos critérios para desempates e
dosimetria das penas. A Corte está dividida entre os ministros que tratam esse
crime dentro do estrito texto legal, e por isso não veem a existência de
quadrilha no caso em julgamento, e os que, como o decano Celso de Mello, se
permitem voos mais altos para chegar à conclusão oposta.
A paz pública, capítulo em que está inserido o crime de quadrilha, é o
"bem tutelado", isto é, o objeto que a legislação procura proteger.
As ministras Rosa Weber e Cármen Lúcia não viram nos fatos descritos na Ação
Penal 470 sinais de que havia uma ação criminosa desse tipo, mas apenas
coautores de diversas ilegalidades, em benefício próprio, no primeiro momento
em que esse crime foi julgado.
A legislação trata de crimes comuns perpetrados por quadrilhas, como roubos,
sequestros etc... Para Rosa Weber, "a indeterminação na prática de crimes
é a diferenciação de bandos e agentes pura e simples. (...) Entendo que houve
aqui crime de coautoria". Quadrilha, na sua concepção, "causa perigo
por si mesma na sociedade".
Quanto à ameaça à paz pública, a ministra considera que ela só se
caracteriza na "quebra de sossego e paz, na confiança da continuidade
normal da ordem jurídico-formal". E os membros da quadrilha têm a decisão
de "sobreviver à base dos produtos auferidos em ações criminosas
indistintas".
Cármen Lúcia fez um adendo às ponderações da ministra Rosa que pode ser
importante na sua distinção entre o caso já julgado e o que estará em
julgamento a partir de segunda-feira. Ela disse que a tese da Procuradoria
Geral da União de que havia uma "pequena quadrilha", formada pelos
políticos dos partidos aliados, dentro de outra quadrilha, esta a que vai ser
julgada, não a convenceu.
Já Luiz Fux se disse convencido de que, demonstrada a "congregação
estável entre os integrantes para o cometimento de crime, está caracterizado
também o crime de quadrilha". Foi nessa ocasião que o presidente do
Supremo, Ayres Britto, fez a observação que já ficou famosa no julgamento:
"A pergunta então seria: o réu podia deixar de não saber, nesse
contexto?" Marco Aurélio Mello, que inocentou o deputado Valdemar da Costa
Neto do crime de quadrilha, assim o fez por questões técnicas: considerou que
não estava configurada a reunião "de mais de três pessoas" como manda
a lei, pois um dos réus está sendo julgado em outro processo, na primeira
instância. No caso do núcleo político do PT, em associação com o núcleo
operacional e o financeiro, a situação é outra, e não é certo que o ministro continue
absolvendo os réus, inclusive porque já condenou outros pelo mesmo crime.
A definição mais abrangente em relação à ameaça à paz pública foi feita pelo
ministro Celso de Mello, num voto histórico em que comparou os réus a "uma
quadrilha de bandoleiros de estrada", definindo-os como "verdadeiros
assaltantes dos cofres públicos", preenchendo os requisitos legais com uma
aula de História.
Citou Cícero, que se referia à paz pública como sendo "a tranquilidade
da ordem (...), o sentimento de segurança das pessoas". Para o decano do
STF, "são esses os valores juridicamente protegidos ao incriminar o delito
de quadrilha".
Celso de Mello identificou um "quadro de anomalia" que revela as
"gravíssimas consequências desse gesto infiel e indigno de agentes corruptores,
tanto públicos quanto privados, devidamente comprovados, que só fazem
desqualificar e desautorizar a atuação desses marginais no poder".
Embora interfira no resultado do julgamento apenas de maneira remota, pois
pode aumentar a pena dos condenados, a definição do crime de quadrilha ganha
uma dimensão política relevante neste julgamento. Isso porque a interpretação
mais ampla de que a paz pública brasileira esteve ameaçada, pondo em risco o
estado democrático de Direito - assumida por Celso de Mello e pelo presidente
do Supremo, Ayres Britto, que chegou a falar em "golpe na democracia"
e depois reinterpretou as próprias palavras para amenizar seu sentido -, traz
consigo o entendimento de que o que houve foi uma conspiração institucional.
Fonte: O Globo
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