Pouco antes de ser assassinado por torturadores no Doi-Codi, em São Paulo, em 25 de outubro de 1975, o então diretor de jornalismo da TV Cultura, Vladimir Herzog, de 38 anos, foi vítima de uma pequena campanha difamatória nas páginas da imprensa. Exigiam que ele fosse, no mínimo, preso e silenciado. Antes de morrer, sofreu o que podemos chamar de violência simbólica. Que, na época, não pôde ser estancada.
Filiado ao Partido Comunista, Herzog tinha consciência de que pediam sua cabeça. Chegou a alertar os colegas. Alberto Dines, então colunista da Folha de S.Paulo, contou parte dessa história num artigo que publicou no site Observatório da Imprensa, em 2005. No dia 10 de outubro de 1975, uma sexta-feira, recebeu um telefonema de Zuenir Ventura, que "transmitia o apelo de um colega paulista, Vladimir Herzog, para que fosse denunciada uma solerte campanha de intimidação, orquestrada havia três semanas por um picareta-agente provocador chamado Cláudio Marques, no hoje extinto jornal Shopping News".
Cláudio Marques chamava o Departamento de Jornalismo da TV Cultura de "TV Vietcultura" e acusava até o empresário José Mindlin, então secretário de Cultura do Estado de São Paulo, de comunismo. "Herzog pedia apenas ao colunista que não mencionasse o seu nome", diz Dines, "porque a campanha era dirigida contra toda a corporação sob seu comando." E atendeu à solicitação. Em sua coluna Jornal dos Jornais, publicada no domingo, 12 de outubro, na página 6, Alberto Dines deu uma nota, com o título "Caça às bruxas", denunciando a campanha.
Não adiantou nada, como sabemos. Herzog foi morto duas semanas depois. Os homicidas se sentiam protegidos para matar. Cínicas, as autoridades fizeram constar no atestado de óbito o suicídio como causa mortis. Somente agora, em março de 2013, a viúva, Clarice Herzog, e seus filhos obtiveram um novo atestado, em que está escrito que Vladimir Herzog morreu em consequência dos maus-tratos que recebeu. Só não se sabe, ainda, quem executou o crime. E a mando de quem.
Quantos anos mais serão necessários para que a informação venha à tona? Quando saberemos o que se passou?
As respostas não interessam apenas à história, ao passado. Entender a cronologia do assassinato de Herzog é fundamental se quisermos melhorar nosso presente. Assassinatos de jornalistas vêm alcançando índices mais que alarmantes no país. Não estamos fazendo quase nada para mudar o quadro.
Em diversas listas, o Brasil é apontado como um dos países mais perigosos do mundo para jornalistas. Segundo a ONG Artigo 19, sete jornalistas foram assassinados aqui em 2012. Outras entidades apresentam números diferentes. A Repórteres Sem Fronteiras fala em cinco assassinatos. O International News Safety Institute aponta 11 casos. As cifras variam porque os critérios também variam. Algumas entidades só computam os homicídios em que o motivo do crime é explicitamente relacionado à atividade profissional do jornalista, outras são mais flexíveis. Qualquer que seja a metodologia, são números inaceitáveis. Em 2013, já houve pelo menos três jornalistas assassinados.
Os assassinos de jornalistas agem como se estivessem acima da lei - exatamente como se sentiam os torturadores que mataram Herzog em 1975. Agem a mando do tráfico, das milícias, da banda podre da polícia. Primeiro ameaçam, depois intimidam e, finalmente, assassinam. Agem como se fossem os donos da comarca, da cidade, do país.
Quando ameaçam matar, não estão brincando. No ano passado, o repórter da Folha de S.Paulo André Caramante se viu forçado a se exilar com sua família nos Estados Unidos. Depois de uma reportagem sobre o então candidato a vereador pelo PSDB na cidade de São Paulo Paulo Telhada, ex-comandante da Rota, Caramante foi jurado de morte. Até agora, não se conhecem os autores da pesada violência simbólica que ele sofreu. Telhada se elegeu vereador e nega qualquer envolvimento no caso. O eco das ameaças continua aí, a humilhar a imprensa.
Há dezenas de outros casos tão ou mais graves pelo país. A imprensa tem um papel a cumprir. Precisa cobrir com mais energia e mais espaço as violências (simbólicas ou não) perpetradas contra seus profissionais. De outra parte, dependemos das autoridades. Elas têm de se mexer.
Em 1975, não houve solução. Dines denunciou a campanha fascista contra Herzog, mas não foi capaz de evitar o desfecho trágico. Aquilo era uma ditadura odiosa. Hoje, estamos numa democracia. Podemos reescrever nosso presente. O primeiro passo é levantar a voz.
Eugênio Bucci é jornalista e professor da ESPM e da ECA-USP
Fonte: Revista Época, nº 774, 25/3/2013
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