Li com atenção muito do que foi escrito sobre o novo papa, de quem nada sabia até sua escolha. Contra ele, o que me impressionou foram os textos de Horacio Verbitsky, jornalista argentino que realizou farta pesquisa sobre a ditadura em seu país e que acusa Jorge Bergoglio de vínculos pouco inocentes com o regime militar. Mas não é por esta via que vejo o futuro da Igreja sob o papa Francisco.
A Igreja Católica é a organização com maior sabedoria prática que existe, elaborada ao longo de 17 séculos - desde que o imperador Constantino lhe deu a proeminência no Império Romano. Seu futuro passa menos pela biografia do novo pontífice, penso eu, do que pela história da Igreja; para não ir longe demais, me limitarei aos últimos 50 anos - o período em que a Igreja se reconciliou com o mundo moderno, que em 1864 Pio IX tinha fulminado no seu temível Syllabus.
Pio XII, que reinou de 1939 a 1958, foi o Brejnev do catolicismo: engessou-o a mais não poder. Foi omisso com os nazistas. Em sua época, havia forte prevenção contra outras religiões. Mas ele foi sucedido por um dos melhores papas da história. João XXIII abriu o diálogo com as demais religiões, cristãs ou não. Adotou a missa nas diversas línguas, para os fiéis entenderem o que o culto significava. Não fosse ele, a Igreja teria desabado. Mas faz parte da Igreja Católica ser capaz, quando precisa, de ter o dirigente de que precisa.
Desde 1958 e deixando de lado o breve papa João Paulo I, tivemos três papas notáveis - e só um fracassado. Paulo VI, menos carismático que João XXIII, consolidou as reformas iniciadas por ele, o assim-chamado "aggiornamento". A partir de 1978, João Paulo II mudou o rumo da Igreja, esvaziando a Teologia da Libertação, desautorando o clero e os leigos de esquerda, agindo decididamente para a queda do comunismo - mas também criticou ditaduras de direita, como a brasileira. Foram três papas que marcaram época.
Já Bento XVI foi o fracasso. Representava a continuidade, colaborador que foi de João Paulo II. Mas não só carece de carisma como não gerou ações marcantes em seu pontificado. Infelizmente, para um dos papas mais intelectualizados que já houve, seu tempo talvez seja lembrado sobretudo pela questão da pedofilia. Esteve constantemente sob ataque e, se teve o mérito de não reagir de forma agressiva (mas como poderia o papa, hoje um líder espiritual sem poder temporal, agredir?), não enfrentou as questões que foram surgindo. Em vez de uma Igreja ativa, engajada, como tivemos de 1958 a 2005, vimos um Vaticano tímido, que mais se defendia do que propunha. Não espanta que tenha dado o passo, raríssimo na história, de renunciar. Não sei se foi docemente constrangido ou se a decisão foi apenas pessoal; mas sua retirada tem toda a lógica. A mesma lógica que tem sua sucessão por alguém que pode ter sido omisso em relação à ditadura argentina, mas cuja ação e retórica estão voltadas aos pobres.
Francisco assume a Santa Sé com uma agenda carregada. Em alguns temas, pouco terá a dizer. Não imagino a Igreja admitindo o aborto ou o casamento gay. Mas poderá aceitar as células-tronco, a ordenação de mulheres, o fim do celibato clerical. Pode reduzir a veemência contra a homossexualidade. A seu favor, a Igreja tem o fato de que o dossiê pedofilia está encaminhado. A mancha ficou com Bento XVI, mas se tornou inadmissível abafar casos de padres pedófilos. Contudo, a ênfase do pontificado poderá estar nos pobres. Essa foi a pauta principal do clero dito de esquerda, cobrindo muito da ação pastoral sob João XXIII e Paulo VI. Foi o que João Paulo II abafou, reduzindo por exemplo a ação das Comunidades Eclesiais de Base, que cumpriram destacado papel na América Latina. Uma retomada da questão pode sinalizar um novo giro na ação da Igreja, mas diferente das décadas de 1960 e 1970.
Isso, por várias razões. Mudou a pobreza. Mudou a esquerda. A pobreza é menor que no passado. Não foi só no Brasil que os percentuais de pobres e de miseráveis despencaram. O fenômeno é abrangente, quase mundial. Se a realidade da pobreza se modificou, o empenho em enfrentá-la também se ampliou. Mudou a direita. Hoje, seria difícil caracterizar a direita liberal pelo empenho em manter a pobreza. Não é contra a desigualdade social, mas não vê graça na pobreza, menos ainda na miséria. Remédios para a pobreza podem ser diferentes - maior ação do Estado, à esquerda, mais empreendedorismo, à direita - mas são mais numerosos do que no passado e granjeiam maior apoio político.
Também mudou a esquerda. Hoje, boa parte da América Latina tem governantes, eleitos, de esquerda. Excetuando a Venezuela, em nenhum caso os Estados Unidos apoiaram uma ação violenta para derrubá-los. E eles aprenderam, com o fracasso do golpe de 2002 em Caracas. Essa esquerda eleita, também, em que pese a retórica de Hugo Chávez, é bem menos radical do que a dos anos 1960. Dilma Rousseff afirma desejar que o Brasil se torne "um país de classe média". É uma proposta antimarxista. Não haveria nada que os rebeldes dos anos 1960 repudiassem mais, porque considerariam esse projeto uma forma - talvez eficaz - de conter revoltas radicais.
O que pode fazer o papa, neste quadro? Bento XVI era uma figura anacrônica. Já um papa de país empobrecido, sorridente, que a seu modo procurou sepultar os fantasmas da ditadura sanguinária que assolou a Argentina, pode ter por meta acalmar a agenda "de costumes" da Igreja e retomar a agenda "social" - leia-se, de combate à miséria. Nada disso seria uma revolução. Mas poderia distender os espíritos, o que Ratzinger não soube fazer.
Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo.
Fonte: Valor Econômico
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