Decorrida mais de metade do mandato presidencial, aconteceu fenômeno que, na ausência da melhor conceituação, tento explicar como sendo uma espécie de corporificação de algo amorfo até ontem, à semelhança do estado gasoso que passa ao líquido e deste ao pastoso, a caminho da solidificação. Perdoe-me o leitor pela incerteza nas palavras, mas os fenômenos que se desdobram no âmbito da psicologia coletiva não são imunes ao caráter vago próprio das coisas que não se medem nem se pesam, dada a sua imaterialidade. A definição e o sentido da opinião pública é o que me parece estar ocorrendo em relação ao governo, personificado na pessoa da senhora presidente, cujos poderes ela exerce, auxiliada por colaboradores de sua escolha e confiança, o ministério.
É sabido que, desde o início do atual governo, sua chefe contou com a simpatia do país. No entanto, enquanto desfrutava dessa situação favorável, seu governo vegetava, insosso; o contraste é manifesto; de resto, o ministério é de sua escolha e dela dependente, pois com a mesma liberdade com que o compôs poderia dispensá-lo, sem sequer justificar a demissão, à sua exclusiva discrição. Nem a copiosa publicidade, principalmente pela TV, em pessoa conduzida pela própria presidente, não sei quantas vezes por dia, foi capaz de imprimir ao governo um fluxo de dinamismo ou um toque de salubridade; nascera indolente, continuava parado, lembrando peça de museu, situação tanto mais estranha quando o governo contava e conta com imensa maioria parlamentar, superior a 80% da Casa.
Ora, um governo que tem o apoio de mais de 80% da representação popular pode fazer tudo, salvo fazer de um homem uma mulher e de uma mulher um homem, para repetir a frase célebre de De Lolme a propósito da Câmara dos Comuns. No entanto, o governo não tem sido capaz de converter em lei projeto por ele considerado necessário. Impõe-se considerar agora que são 39 os ministérios, se não for considerado o quadragésimo, exercido pelo marqueteiro oficial. Quais são as relações funcionais com esse conjunto de notabilidades que recebeu da presidente áreas importantes e complexas da administração? Eles têm acesso à presidente, como seria normal? Ao que sei, isso não ocorre. Resultado é que a "base de sustentação", como agora se denomina a maioria parlamentar, vem se revelando cansada, senão indiferente, ao governo. Ao meu sentir, isso resulta da partilha do governo em dezenas de fatias, distribuídas em ministérios e a partidos.
O consórcio entre a presidente popular e um ministério sem fisionomia, a despeito de ser sua criatura, parece ter chegado a seu termo ou, pelo menos, com fissura perigosa, claramente mensurável, quando o prestígio da chefe do governo vem de sofrer queda de oito pontos, entre os que consideravam ótimo ou bom seu governo. Era de 65%, mermou para 57%. Dir-se-á que, ainda assim, a presidente detém a maioria, fato que é inegável. Mas igualmente ninguém pode negar que a queda não foi despicienda, nem acidental. É fácil especular a respeito, mas é preferível aguardar o resultado da próxima ou próximas medições de popularidade para que essas possam ser mais cerebrais e menos emocionais. Por ora, pode-se dizer que a redução de oito pontos na popularidade foi mais do que significativa. De 65% para 57%.
Essas considerações não dispensam que se lembre que o PIB está praticamente estacionário, e isso não acontece por acaso. Daí resultam as preocupações de quem pensa a respeito do futuro próximo da nação e, quiçá, também do futuro.
*Jurista, ministro aposentado do STF
Fonte: Zero Hora (RS)
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