O melhor para o tribunal, para o governo e a vida que segue seria a página virada – mas há leis, direitos, interpretações
Não sejamos ingênuos: é claro que entre Justiça e política há vários tons de cinza. Quanto mais o País se aperfeiçoa, essa confusão diminui. Mas ainda não chegamos lá. Política envolve paixões, interesses e projetos de poder. A Justiça deveria frear, conter as paixões, limitar interesses ao legal e ao legítimo. Política é conflito na perspectiva de construir consensos, que viram lei, pactos consignados. Lei é a expressão da política. Juízes aplicam as leis de acordo com o espírito que as embalaram. Natural que haja fricção entre esses poderes, mas, cada um na sua esfera, o normal é que acertem o passo.
Não tem sido assim, porém. Não é muito simpático admitir, mas o Supremo Tribunal Federal (STF) tem assumido posição de proa na representação dos anseios políticos de parte da população e isso abre espaço para confusão desses tons de cinza. Assim, do julgamento da Ação Penal 470, o mensalão, passou-se a esperar o resgate de uma pretensa cidadania que deveria vir pelas mãos da política. Não que exatamente se fizesse justiça, mas que se justiçasse – menos que justiça, a vingança. Em alguns momentos, pairou no ar o julgamento político, como o de Danton. Nada menos que a guilhotina foi aceitável.
Não há santos nem vítimas. Há réus e juízes, direitos e deveres, não há guerra santa. Alguém pode ser acusado por se defender? Perigoso é que o debate produza vilões e heróis, de modo que a figura enérgica do ministro Joaquim Barbosa assumisse o vulto não do juiz, mas do paladino da Justiça. Que, na criatividade dos ângulos em que foi fotografado, se revelasse um Batman – e o Brasil, sua Gotham City. O tribunal, lócus da maior expressão da racionalidade e do direito, não é a Liga da Justiça. Barbosa tem méritos, mas não é maior que a instituição que preside.
Não é salutar que assim seja. Mas, aplaudido pelas ruas, sua importância apenas revela o vazio de lideranças políticas críveis, colocadas acima da miséria dos pequenos interesses partidários. Evidencia a falência da política e sua judicialização. O clichê faz sentido: não há mesmo vácuo em política. Mas na democracia outro clichê também diz que o que se teme é a Justiça, não o juiz. Na personalização da instituição, tudo em torno do mensalão virou dramático, apaixonado, decisivo: ajuste de contas. O local da política e do espetáculo da política se deslocou: os embates entre Barbosa e Lewandowski melhor caberiam nas tribunas da Câmara e do Senado.
Há alguns meses, eufóricos apressados qualificavam o julgamento como "o maior marco histórico da Justiça do País" e o mensalão, "o maior escândalo de todos os tempos", "a maior crise". O exagero deforma imagens e, com isso, a compreensão da realidade. Dizia-se que a partir de então tudo seria diferente. Calma, o processo é necessariamente mais lento. Fez-se uma grande arquibancada com torcidas em cólera e, de cada lado, as imagens se invertiam: heróis viravam vilões; vilões, heróis. A história instantânea daqueles dias foi rapidamente produzida e publicada em pó, para ser diluída no gosto de sangue, na saliva da opinião pública.
Nessa semana, porém, nas ruas e nas redes sociais esse clima se inverteu, e tudo que parecia sólido tornou-se vertigem e frustração. Euforia e precipitação levam a isso. Do Supremo, antes redenção nacional, gritou-se: "Absurdo!" Especulou-se até – há especulação para todos os gostos na internet – que Barbosa pudesse (ou devesse) vir a renunciar à presidência do tribunal. E na expectativa do posicionamento do ministro Celso de Mello, de recentes votos tão duros, a maior apreensão: como pode ou poderá o decano dar agora pelo menos essa razão aos réus que acabara de condenar? Para os anais, ficarão os diálogos de quinta-feira entre Marco Aurélio Mello e Luís Roberto Barroso, o novato insurgente. Servir ou não às multidões foi a raiz da desinteligência de suas excelências. Mas é o "xis" do problema.
A mesma instituição decantada há apenas alguns dias agora é posta em dúvida. A euforia dá lugar a uma despropositada descrença. É essa a volatilidade de nossa autoestima. Mas nada é tão decisivo nesses embargos aflitivos. Seus críticos que resolvam se o STF que ontem puniu tem ou não legitimidade – agora e no passado. Novos eufóricos que definam: a suposta grandeza e legitimidade de agora não é a mesma de antes?
Contar a história como convém não nos retira do impasse. No mais, esses tons de cinza sempre existirão. Claro, a delonga do processo não é saudável. Provavelmente, nem mesmo para quem vive a expectativa e a agonia da aplicação das penas. O melhor para o tribunal, para o governo e para a vida que segue é que tudo tivesse finalmente seu término, página virada. Mas as coisas não são assim: há leis, direitos, interpretações e nem tudo se constrói sem contradição, idas e vindas. Juízes são humanos, possuem idiossincrasias e, como declarou Barroso, não estão acima da verdade. Nem da lei, certamente, em que pese as crenças de alguns novos heróis e de seus pares, na euforia das multidões que os seguem.
Carlos Melo é cientista político e professor do INSPER
Fonte: O Estado de S. Paulo / Aliás
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