Aqui no Brasil, de certo modo, JFK começou a ganhar vida no momento em que foi morto
A morte de John Kennedy foi simbolicamente elaborada no Brasil a partir de um imaginário próprio e peculiar, um tanto diferente de como foi vista nos Estados Unidos. É claro que, através do noticiário, a versão americana dessa morte demarcou as referências da concepção que dela aqui se teve. Contraditórias notícias sobre comunistas, de um lado, e da própria CIA, de outro, como supostos agentes ou promotores do crime, expressavam a paranoia daqueles tempos da louca polarização da Guerra Fria.
Aqui tínhamos demarcadores próprios que reinterpretavam o noticiário vindo de fora no entendimento das pessoas comuns. Estávamos ainda no início da globalização, que para nós quase se limitava à sugestão da "pausa que refresca", da Coca-Cola. Dois anos antes, Paulo Guilherme Martins publicara na Revista Brasiliense, de Caio Prado Júnior, um imaginoso artigo, Um Dia na Vida de Brasilino. A revista era uma publicação de esquerda e nacionalista e o texto chamava nossa atenção de patriotas ingênuos para o fato de que muitos produtos de uso e consumo diário, que reputávamos brasileiros, já não o eram. Os cigarros Souza Cruz já não eram fabricados "nem pelo sr. Souza nem pelo sr. Cruz", mas por uma empresa estrangeira.
Kennedy ainda não se tornara propriamente um personagem de nosso imaginário nem era ainda produto de consumo simbólico. Era apenas tema do noticiário cotidiano, nas relações difíceis entre EUA e Brasil. Na opinião pública mal se vislumbrava a real natureza das dificuldades de relacionamento dos dois países, Jango alinhado com a esquerda, ainda que de esquerda não fosse, pois vinha da tradição populista, e os americanos notoriamente apoiando grupos e partidos que no Brasil eram considerados de direita. Um cenário que já antecipava o golpe de Estado de 1964.
A morte de Kennedy teve entre nós não muito mais do que a repercussão de um último capítulo das populares novelas de rádio e TV. Aquela emblemática fotografia da família Kennedy no funeral, a do pequeno e inocente John-John batendo continência para o féretro do pai, definiu aqui os sentimentos de muitos em relação ao extinto. Kennedy foi visto pela mediação da figura da viúva e dos órfãos. Foi visto com pena popular e não como personagem trágico de um fato político.
De certo modo, aqui no Brasil, como reelaboração imaginária, Kennedy nasceu e ganhou vida quando morreu. Em pouco tempo, um grande número de municípios deu a uma de suas escolas ou de suas vias públicas o nome de "John Kennedy", de preferência a avenidas, mais do que a simples ruas. Ou mesmo "João Kennedy", um Kennedy "meio nosso", macunaimicamente digerido por nossa antropofagia crônica. Que não houvesse dúvida sobre o tamanho dos sentimentos dos munícipes homenageantes. As câmaras municipais comunicavam o fato à Embaixada Americana. Um oportunismo generalizado pegou carona no cadáver do presidente morto.
Havia passado a época dos cristos redentores, cópias de cimento, desprovidas de imaginação, do Cristo Redentor do Rio de Janeiro, colocadas no outeiro mais próximo do centro de cidades, de preferência pequenas e médias. O Brasil se confirmava como a sociedade da cópia. O que tinha um desdobramento na difusão das fontes luminosas. Não havia município do interior que não quisesse ter a sua, mesmo onde o abastecimento de água era um serviço limitado e precário. Os atores do chamado footing interiorano ganhavam um cenário e um adorno kitsch que, no entanto, iluminava e acariciava os afetos e paixões de moças casadoiras e moços idem. O nome de Kennedy acrescentava um ornamento diferente e sentimental aos indícios de inserção na pós-modernidade brasileira que apenas se esboçava. Ele se situava na cultura da colagem dos fragmentos residuais do que vinha do grande e distante mundo da verdadeira arte e da verdadeira política. Mais indício de que queríamos chegar lá do que daquilo que éramos.
No roteiro de novela que lhe definiu o uso, a morte de John Kennedy o trouxe ao Brasil como personagem de luto, sem de fato tê-lo trazido antes como personagem de política na percepção popular. Na política, suas relações com o Brasil da era Goulart foram relações tensas. Era o momento mais difícil da Guerra Fria. Na polarização quase radical entre os EUA e a União Soviética não havia lugar para o nacionalismo agônico, de fim de era, no qual Jango tentava equilibrar-se com sua política externa independente. Uma carta que lhe enviou Kennedy, nos próprios dias da crise dos mísseis, em 1962, era verdadeira intimação a que o Brasil se juntasse aos americanos numa eventual intervenção militar em Cuba, o Brasil tratado como colônia. Jango deu-lhe uma resposta equilibrada, sensata, pacificadora. Meses antes, mal nos déramos conta de que um Jango festivamente recebido por Kennedy e pelos nova-iorquinos era a melancólica figura de governante de chapéu na mão, o Brasil dependente enfrentando dificuldades econômicas que o distanciavam de qualquer pretensa independência.
José de Souza Martins é sociólogo, Doutor Honoris Causa da Universidade Federal da Paraíba e autor, entre outros, de A sociologia como aventura (Contexto)
Fonte: O Estado de S. Paulo / Aliás
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