Há 25 anos um caudaloso rio se formava nas alturas do Planalto Central, fluindo de duas cúpulas, uma côncava, outra convexa, e passando a despejar seu volume nas cidades e nos campos, banhando comunidades, irrigando roçados e elevando o ânimo de grupos que, presentes em seu nascedouro, ajudaram a definir o caminho das águas pelo território. A Constituição de 1988 reveste-se da imagem desse rio, formado pela confluência de correntes dos mais variados espaços: mulheres, indígenas, quilombolas, militares, funcionários públicos, profissionais liberais, negros, empresários, banqueiros, exportadores, aposentados, transgêneros, etc. Duas décadas e meia passadas, as águas do rio ainda se esparramam por planaltos e planícies, em direção ao oceano, esbarrando em montanhas, desviando de barreiras, descendo encostas, serpenteando curvas, adentrando espaços entre rochas, para dar vazão a seu curso. Afinal, a obra de um rio se completa quando suas águas abraçam o mar. Se não houver espaço por onde fluir, a inundação pode ocasionar desastres.
O retrato que flagra a vida social do País, nos últimos tempos, deixa ver no fundo da paisagem sombras e vultos que se fizeram presentes na modelagem da Lei Maior do País, a mais democrática da História republicana. A movimentação social que se viu nas praças e ruas das grandes cidades em meados do ano passado, ou os rolezinhos de jovens em shopping centers, como se veem hoje, a par de características específicas, são fenômenos com origem nas mesmas torrentes que fecundaram estas plagas. Sob os ares democráticos, grupamentos que formam a comunidade nacional, cada um a seu modo, procuram meios e formas para expressar sua identidade e suas demandas. Basta anotar que os arredores e o interior das duas cúpulas do Congresso Nacional se transformam em palanques para pressões e manifestações, na esteira de uma tendência que se mostra forte e irreversível: a fixação de pilares para a construção do edifício de uma democracia participativa. Só os broncos fecham os olhos para o fértil ciclo social que atravessa o País.
Abramos a análise com a pergunta: por que os jovens surfam na onda do rolezinho? Há respostas para todos os gostos. O represamento da expressão, por exemplo. Os jovens constituem o segmento mais distanciado da esfera político-institucional, particularmente quando se analisam engrenagens que agem sobre o poder central. Os corredores das Casas representativas costumam se locupletar com a presença de grupos de muitos nichos, a partir dos trabalhadores, mas a presença de jovens é escassa, restringindo-se a pequenos grupos que encabeçam as entidades estudantis, historicamente comandadas por partidos políticos. Diferentemente de pais e avós, que atravessaram os túneis escuros da ditadura de 1964, enveredando pelas retas e curvas da linguagem política, os jovens de hoje nasceram e cresceram sob o limbo de uma locução amorfa e despolitizada. Nos idos da redemocratização (1985/1986) abriu-se por completo a locução, resgataram-se as liberdades, rompeu-se o elo do medo. Uma geração reprimida aplaudia uma produção bem elaborada e original de artistas como Chico Buarque, Caetano Veloso e Gilberto Gil. Tempos de chumbo, tempos criativos. Hoje nem a juventude madura consegue inserir na cachola a tal Constituição cidadã de 88, que um careca de voz embargada, conhecido como Ulysses Guimarães, declarou promulgada.
Mergulharam as turbas jovens nas águas do consumismo desvairado, cujos traços exuberantes se realçam na retórica propagandística, em fantasias e sonhos, nas novelas da moda e sua caprichosa engenharia de persuasão. O hedonismo, a intensa busca do prazer, a necessidade de autoafirmação (a construção do Eu, Eu existo, Eu sou importante), a busca de identidade, sob a moldura das enormes carências em periferias superpovoadas, fecham o circuito indutivo. Formam-se os bailes funk, os ajuntamentos jovens nos bairros, o desfile estético de cortes e cores nas cabeleiras, as vestes extravagantes (o rasgo esquisito no jeans), a denotar o esforço do indivíduo para deixar de ser anônimo na massa. O todo só existe porque a parte, ele, ali está, visível, onipresente. A degradação dos serviços públicos (precários meios de mobilidade), a desastrada infraestrutura de lazer nas cidades, a falta de praças e até de bancos para sentar (na Avenida Paulista, a mais referencial de São Paulo, há apenas um banco) incitam a criação de ações e pequenas mobilizações. Que, de maneira surpreendente, acabam gerando efeitos estrondosos por se impregnarem do espírito do tempo.
Contingentes desfilando com bandeiras reivindicatórias, black blocs promovendo quebradeiras, grupos convocados pelas redes sociais para rolezinhos, movimentações de todos os naipes são extensões dos braços de uma democracia em processo de consolidação. Simbolizam a vontade social de maior inserção no processo democrático. Um jovem de 17 anos, ao dizer que nos eventos de que participa se interessa apenas em somar o número de moças a beijar, dá ideia de alienado. Ora, mas essa é sua visão de mundo. Se as ruas estão inseguras, procura shoppings, lugares mais seguros. A busca de segurança, em espaços charmosos, é, assim, um recado ao poder público. E aos políticos, afundados no poço da descrença.
Convém registrar, por último, a forma como governantes e proprietários têm considerado os ajuntamentos em shopping centers. Tratam o caso como questão policial, e não como fenômeno social. Tampam os olhos para sua natureza. Não se pode proibir o ingresso de um jovem nesse ambiente olhando para a cara ou a roupa. É claro que a propriedade particular deve ser preservada de baderna. O bom senso deve guiar os ânimos. Sempre sob a lembrança de que fiapos d'água podem formar, ao longo do curso de um rio, grandes correntezas.
No mais, é esperar. O carnaval vem aí e as águas vão rolar.
Jornalista, professor titular da USP
Fonte: O Estado de S. Paulo
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