Saída, voz e lealdade são conceitos propostos por Albert O. Hirschman em livro de 1970, com o intuito de esclarecer como pessoas e organizações respondem aos desafios da mudança. Uma das originalidades da reflexão de Hirschman é a de ter sempre presente, como economista, o rigor da análise econômica sem exclusão da multidisciplinaridade das ciências humanas para o apropriado entendimento dos equilíbrios e desequilíbrios da ordem social, política e econômica. Daí a relevância e a repercussão da sua obra.
Saída está ligada ao retirar-se de uma relação. Tem muito que ver com o campo econômico, pois se conecta ao potencial do mercado, de bens, serviços e empregos, ter condições de oferecer alternativas àqueles que estão insatisfeitos com o mundo de suas transações correntes. O papel maior ou menor da saída está correlacionado com a disponibilidade de escolhas, a existência de competição e o bom funcionamento dos mercados. O enredo da prática da saída interliga-se, assim, à ampliação dos mercados e à liberdade de movimento das pessoas e dos recursos.
A voz insere-se no campo da política e o enredo da sua prática é o de um mecanismo de articulação de insatisfações com o status quo. Correlaciona-se com o vigor pluralista da democracia, com o direito de discordar, com a vigência do devido processo legal, com a atuação de organizações como partidos, sindicatos, organizações não governamentais, que explicitam demandas de indivíduos ou grupos. O mecanismo da voz usualmente requer a ação conjunta, que enseja o potencial da ação coletiva.
Na interação da faceta econômica da saída com a política da voz, desempenha papel fundamental a lealdade, que se imbrica com a confiança. Confiança num sentido amplo: nas instituições e nas pessoas, no Estado, numa empresa, no funcionamento da economia. A erosão da confiança compromete a lealdade e amplia o espaço para a saída, como é o caso da fuga de capitais e do aumento de fluxos migratórios. A persistência da confiança assegura a lealdade e, desse modo, o equilibrado espaço para voz, sem a exclusão das possibilidades da saída.
A intensidade da voz teve papel relevante na redemocratização do País, na campanha das Diretas-Já, no abrangente interesse pelos trabalhos da Constituinte, nas primeiras eleições diretas para a Presidência da República, na movimentação que levou ao impeachment do presidente Fernando Collor, nas explicações públicas que ensejaram o sucesso do Plano Real e nas eleições tanto de Fernando Henrique Cardoso quanto de Lula. Em contraste, o que se nota mais recentemente é uma diminuição, em nosso país, da qualificada intensidade da voz, ainda que o seu potencial se tenha expressado, com estridência, nas imprecisas manifestações públicas de insatisfação no ano passado. Esta situação é fruto de uma descrença na voz da política e dos políticos? Compromete o bom funcionamento da sociedade? Significa uma erosão da confiança nas instituições, um dos grandes fatores da esquiva dinâmica do equilíbrio entre saída e voz?
Para essas perguntas Hirschman oferece pistas interessantes em livro de 1982, Shifting Involvements. Nele analisa em que medida o comportamento coletivo de maior participação na vida pública (que enseja a voz) e os de desinteresse e recolhimento para a esfera privada (que favorece a saída) não são cíclicos e comportam aproximação com a dinâmica dos ciclos econômicos.
Hirschman observa que a decepção é um fator de ordem geral que motiva tanto a saída quanto a voz, que são atos que, nos contextos social, econômicos e políticos, podem levar seja à satisfação, seja à insatisfação. Por isso é preciso avaliar o papel da decepção no entendimento da mudança dos ciclos de comportamento coletivo, que ora favorecem mais a busca da felicidade privada, ora a da felicidade pública. Existem, para ecoar o Eclesiastes, tempos de felicidade pública, os do falar da vita activa da política, e tempos de busca da felicidade privada, que passam pelo calar silencioso da saída. Estes, no mundo contemporâneo, dizem respeito à liberdade moderna de usufruir satisfações privadas, que se veem favorecidas quando a criação de riqueza é vista como superior à luta pelo poder. Isso também encontra uma justificação quando se concebe que, por obra da "mão invisível" de Adam Smith, a busca do ganho privado propicia, mesmo com ausência de voz, o interesse geral.
É da natureza da ação política tanto o empenhar-se quanto o alcançar objetivos, mas existe um hiato entre a imaginação e os sentimentos que motivam o empenho e os seus resultados. Daí a decepção proveniente do fato de os desdobramentos da atuação pública usualmente ficarem aquém das expectativas. A experiência mostra - e é o caso do Brasil - que, tendo em vista a complexidade da realidade, a força dos interesses e a divergência de valores, subestima-se, com frequência, o tempo necessário para que a atividade pública alcance os seus objetivos - e nem todos têm a paciência para o exercício da paixão do possível. Daí o cansaço das pessoas, que propicia a saída em detrimento da voz e afasta muita gente da vida pública. A isso cabe acrescentar que, no plano da lealdade, a visibilidade da demanda e oferta da corrupção mina a confiança no funcionamento das instituições. É o seu cupim e constitui um fator de decepção que corrói a voz do civismo.
Este ano é de eleições, mas o momento do voto, por si só, não mede a intensidade dos sentimentos das pessoas em relação aos assuntos públicos. Daí a importância, na campanha eleitoral, da presença pluralista da voz, devidamente escoimada das desqualificações e dos patrulhamentos, que se contraponha, pela sua qualidade, ao desencanto com a política e articule, pela palavra dos candidatos, da cidadania e dos analistas, um sentido de direção em relação ao muito que é necessário fazer para encaminhar os grandes problemas do nosso país.
Professor emérito do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo
Fonte: O Estado de S. Paulo
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