Mesmo quando você escreve sobre algo doído, você cria uma alegria estética. Você escreve para sublimar, superar, não para maltratar mais ainda
Adriana Abujamra - Valor Econômico
Ferreira Gullar vive há mais de 30 anos no primeiro andar de um prédio antigo em Copacabana. De lá não arreda pé. "Nunca! Já pensou na quantidade de livros que teria que transportar? Só a trabalheira já me faz desistir." O poeta, aos 83 anos, mora só. A não ser pela gata siamesa que anda pelos cantos, invade sua cama e suas crônicas.
As paredes estão abarrotadas de quadros. Tem, entre outros, Iberê Camargo, Samico, Niemeyer e um desenho do filho Marcos, que já morreu. Há ainda obras de sua autoria, como os móbiles coloridos, em estilo Calder, e colagens em relevo, que serão expostas na galeria Dan em São Paulo. "Mas eu não sou artista plástico, faço por hobby", vai logo avisando. Pintar, recortar e colar - sobre a mesa de madeira escura que fica no centro da sala - é sua maneira de se abstrair de tudo. "Me delicio em fazer. Não tem corrupção, perdas, filho morto, amigos que se foram. Neste momento eu sou só um cara que lida com cores", costuma dizer.
Mas hoje teve de encarar um vazamento no banheiro que por pouco não dissipou as cores de sua segunda-feira. Depois de passar a manhã às voltas com o contratempo, largou o encanador e a gata, com sua mania de se esconder de estranhos, vestiu uma camisa listrada e veio caminhando para este "À Mesa com o Valor". O poeta é figura conhecida no La Trattoria. Os garçons sabem que o homem come pouco. Qualquer que seja o prato, o freguês traça apenas a metade. A outra ele leva para casa - "é minha quentinha". Vem daí seu apelido de "Meia Porção" - dado por sua namorada, a poeta carioca Claudia Ahimsa, 34 anos mais jovem.
Periquito, conta, é outro de seus apelidos. Mas esse é antigo que só. Vem lá dos tempos de garoto "nordestino/ mais que isso/ maranhense/ mais que isso/ são-luisense..." Moleque, gostava de vagabundear com seus amigos que respondiam pela alcunha de Esmagado e Espírito. O trio costumava jogar pelada, surrupiar copos de botequim e se enfurnar nos cinemas da cidade. Quando o furto era farto, iam ao Éden, a sala de cinema mais pomposa de São Luís, e de lá jantar em qualquer birosca da redondeza.
Cama em casa era artigo de luxo destinado apenas aos pais. Os rebentos dormiam em redes. "Dez filhos! Como ia caber tanta cama?" O quintal era cheio de galinhas, plantas e formigas. "Onde há formigueiro, há ouro", diz a lenda popular de sua terra. Um dia Gullar e suas irmãs encasquetaram com o dito. E se for verdade? Cavaram obstinadamente o chão do quintal de onde brotavam saúvas vermelhas em busca do tal tesouro. No meio da empreitada desabou uma tempestade. Resumo da ópera: formigueiro inundado, molecada enlameada e sonho da fortuna enterrado. O episódio, como tantos outros de sua infância, ficou cravado em sua memória e serviu de mote para um de seus primeiros poemas concretos, "O Formigueiro". Nele, as letras dispersas nas páginas lembram formigas e, como no quintal, traçam ali o mapa do ouro.
O papo está bom, mas poesia não alimenta. Vamos pedir? Gullar vai de suco de laranja e bife grelhado com legumes. "Ah, sem as batatas!", avisa o homem que, magérrimo, está de dieta para controlar o índice de glicose no sangue. "Prefiro não abusar." O garçom se afasta e o assunto volta.
O pai, Newton, depois de uma carreira como jogador de futebol, passou a tocar uma quitanda. Em suas viagens de trem para comprar mercadoria em outra cidade, às vezes, levava junto o moleque. O trem saía de madrugada e, ao amanhecer, cortava um vasto pantanal. Gullar grudava os olhos na janela, deslumbrado - "e como era grande o mundo/ há horas que o trem corria/ sem nunca chegar ao fim..."
"Poema Sujo" - escrito em Buenos Aires, durante seu exílio, depois do golpe de 64 - resgata essa experiência. "Lá vai o trem com o menino/ Lá vai a vida a rodar/ lá vai ciranda e destino/ cidade e noite a girar..." - trecho que virou letra de "Trenzinho Caipira", de Villa-Lobos. A memória, resgatada em vários de seus poemas, diz, é também inventada. A quitanda de seus versos não é exatamente a quitanda de seu pai. "É uma quitanda transformada, transfigurada. É como eu gostaria que fosse."
Depois de um gole de suco, conta que livro era raridade em sua casa, fora um ou outro de história policial. Gullar descobriu a poesia por acaso. Tinha por volta de 13 anos quando escreveu uma redação na escola sobre o Dia do Trabalho, "justamente o dia em que ninguém trabalhava!" A professora, maravilhada, leu em público, na frente de seus colegas. O menino só não ganhou a nota máxima porque cometeu alguns erros de ortografia. Ah, é? Disse para si: "Se eu quiser ser escritor não posso errar no português".
E assim passou dois anos lendo livros de gramática. Um desses livros continha uma antologia de poetas, o que o despertou para esse tipo de produção literária. "Só estranhava que todos já estivessem mortos. A poesia me parecia uma profissão de defuntos", comenta, rindo. Até que conheceu o pai de uma amiga. Esse senhor, metido em sandálias e camiseta, era membro da Academia Maranhense de Letras. "Ele me apresentou uma quantidade de poetas, todos vivos! Aí entrei na vida literária." Abandonou a escola e nunca foi à faculdade. Buscou, por conta própria, as respostas exigidas por sua curiosidade intelectual. Gullar, que havia se formado lendo poesia parnasiana, descobriu que o material para a arte não precisava vir de um universo idealizado, mas da vida banal, cotidiana.
Depois de ganhar um prêmio de poesia concedido por uma revista literária do Rio, decidiu abandonar o cenário provinciano de sua infância e partir para a capital fluminense. Ele não tinha a menor ideia de como atravessar aquelas avenidas com quantidades enormes de carros circulando. Na certa seria atropelado, pensou. Foi quando uma alma boa apareceu em seu socorro e disse: "Rapaz, para atravessar a avenida você tem que ir até a esquina onde está o sinal luminoso". Perdeu o medo das avenidas, mas ganhou outro, de avião. "Viajei por 50 anos de avião. Acho que já dei chance suficiente para ele cair, agora não dou mais."
“Sempre quis me comunicar, não quero ser um gênio maldito”, diz o poeta, que participa do Flipoços, festival literário que ocorre até o dia 4
O garçom aparece com os pratos. O nosso é farto, já o do Meia Porção... Quando o moço se afasta, Gullar fala sobre seu livro "A Luta Corporal", lançado quando ele tinha 23 anos. "A 'Luta' me levou a desintegrar a linguagem. Mas não fiz de propósito. Pelo contrário. Destruí meu instrumento de trabalho, fiquei sem rumo." O poeta percebeu que seria impossível continuar escrevendo daquela maneira, pois ninguém entenderia. "Sempre quis me comunicar, não quero ser um gênio maldito.
Aquilo foi um caminho que eu me meti em função de minhas indagações e foi justamente na época em que a poesia brasileira tinha voltado ao verso rimado e metrificado."
Depois do lançamento de "A Luta Corporal", os irmãos Haroldo e Augusto de Campos e Décio Pignatari procuraram Gullar para falar sobre a destruição da poesia e propuseram o concretismo como um novo caminho poético. O movimento trocou o discurso pela sintaxe visual. "O Formigueiro" é dessa época.
"Mas os irmãos Campos diziam que isso não era poesia concreta!", diz, indignado, mexendo as mãos enormes. "Eles tinham uma concepção que era uma bobagem. Inteligentes, mas muito teóricos, e inventaram que a poesia concreta deveria se feita matematicamente. Coisa de doido, né? Tudo besteira! Matemática é uma linguagem e poesia é outra. Arte não pode ser tão somente uma atividade racional. Aí rompemos." Finda a fala e espeta com gosto um pedaço da carne. "Poesia não é uma coisa que se controle. Ela nasce de algo que se revela inesperadamente."
Como no dia em que, caminhando pela orla da praia, deparou com uma nesga azul no céu. "Linda. Aí falei. Poxa! Meu filho costumava passear por aqui, deve ter visto uma nesga azul como essa. Ele estava dentro de mim vendo o céu. No momento em que pensei isso nasceu o poema. 'Os mortos veem o mundo pelos olhos dos vivos/ eventualmente ouvem com nossos ouvidos'. Mas não é uma coisa deliberada, compreende? Quantas vezes eu andei por aí e nada?" Larga os talheres no prato e diz que a arte é feita para criar alegria, beleza e emoção. "Mesmo quando você escreve sobre algo doído, você cria uma alegria estética. Você escreve para sublimar, superar, não para maltratar mais ainda."
Deixa as palavras ressoando no ar antes de contar como surgiu um outro poema. Estava no centro da cidade, pronto para atravessar uma avenida, quando alguém gritou de longe: "Poeta! Oh, poeta!" Gullar interrompeu os passos e encarou o sujeito que se aproximava. "Cara, te admiro. Adoro sua poesia!" Mas o poeta estava chateado, cheio de problemas de família. "Quando ele foi embora pensei: Pô! Este cara me inveja e mal sabe ele o estado em que eu estou."
Aquilo ficou ruminando em sua cabeça até que surgiu o poema "Traduzir-se", musicado por Fagner e cantado por diferentes intérpretes. "Uma parte de mim é todo mundo/ outra parte é ninguém: fundo sem fundo/ Uma parte de mim é multidão/ outra parte estranheza e solidão." Acaba de recitar e continua olhando para a frente, calado. Abaixa o rosto, ajeita um punhado de legumes no garfo e, antes de levá-lo à boca, diz: "Sabe, uma coisa é o ser público, e outra é você mesmo. A cantora Simone me falou: 'Eu sou isto! Eu canto, centenas de pessoas me ouvindo. E depois? Vou para o quarto sozinha, solitária, angustiada'."
"Com licença" - diz um jovem que se aproxima de nossa mesa. "Vim aqui só para dizer que sigo sendo seu fã." Aperta a mão do poeta, balança umas três vezes e vai embora.
Quando o fã se afasta, o poeta - que neste fim de semana está em Poços de Caldas, como patrono do Flipoços, festival literário que ocorre até o dia 4 - diz que a poesia, ao menos no seu caso, só nasce de algo que o surpreenda. Caso contrário, não escreve. Tanto que seu último livro "Em Alguma Parte Alguma" saiu já faz quatro anos. "Quer dizer que eu decidi não escrever? Simplesmente o espanto não aconteceu, então não escrevo." Já suas colunas semanais no jornal "Folha de S.Paulo" têm de sair de qualquer maneira. Os temas são variados - arte, poesia, política, memórias da infância ou qualquer assunto que esteja na pauta do dia. Um dos temas recorrentes é sobre o tratamento de doentes mentais no Brasil. Gullar teve dois filhos com esquizofrenia. Paulo vive em um sítio em Pernambuco. Marcos, que tinha um quadro mais leve da doença, morreu em 1992, de cirrose hepática. O poeta sempre falou abertamente sobre o assunto.
"O estômago não adoece? O rim não adoece?", pergunta deixando os talheres de lado novamente e liberando as mãos, que acompanham a fala. "Então por que o cérebro não adoece? Ele por um acaso é sublime? A única diferença é que adoecer o cérebro sob alguns aspectos é mais grave. Você pode perder a noção das coisas e fazer até o que o filho do Eduardo Coutinho fez com ele", comenta, referindo-se ao cineasta que foi assassinado pelo filho em fevereiro. "O que digo é que a internação é necessária quando a pessoa entra em surto e se torna um perigo para si e para os outros. Ninguém prega internação para sempre. Mas existe aí um movimento de idiotas antimanicomial", diz aumentando o tom de voz, para concorrer com o "Parabéns" cantado em uma mesa ao fundo e também porque está tomado pelo assunto.
"Ninguém é doente mental 24 horas por dia. No último surto, meu filho ligou para mim e disse: 'Pai, vem me internar porque não estou me sentindo legal'. Eles têm uma consciência. Dói internar um filho, mas às vezes não tem outro jeito." Faz dez anos que Gullar não vê o filho, que vive no sítio de um amigo do poeta em Pernambuco. "Mas a gente se fala todo dia por telefone. Lá não entram drogas, ele toma os remédios. Está feliz, namorando."
“Sentia-me dentro de um cerco que se fechava. Decidi então escrever um poema que fosse meu testemunho final”, diz sobre “Poema Sujo”, criado no exílio
Gullar pega novamente os talheres e - enquanto faz pequenas pausas para pegar pequenas porções da comida - conta que a doença surge geralmente na adolescência. No caso de Paulo, o poeta tinha acabado de chegar a Buenos Aires, uma das cidades onde ficou durante os quase sete anos de exílio. "Era um horror. Eu não queria morar fora, aquilo era um castigo para mim." Para evitar que a família toda "pagasse o preço de seu exílio, o que não era justo", a mulher, o caçula e a filha - Luciana - hoje mãe dos seis netos do poeta - retornaram para o Rio. Apenas Paulo ficou com ele. Gullar percebia algo estranho no filho, mas não imaginava o que poderia ser.
"Eu não conhecia a loucura, não conhecia esse troço." Os dois jogavam futebol na sala, de porta aberta, quando a bola caiu pela escada. O rapaz, com 18 anos, foi atrás da bola e não voltou mais. Desapareceu. Gullar saiu feito doido pelas ruas, mas não o encontrou em parte alguma. Desistiu e voltou para casa na esperança de que Paulo voltasse. Nada. Foram duas semanas de desespero até descobrir que o filho estava em uma delegacia. Tinha sido pego tentando roubar um carro. O detalhe é que ele não sabia dirigir. Gullar levou Paulo, que estava magérrimo, para um hospital psiquiátrico, onde ficou internado até que saísse do surto. Em poucos dias Paulo fugiu de lá também. Seu paradeiro só foi descoberto dois meses depois. Conseguiu viajar, sozinho, de Buenos Aires ao Brasil: "Veio de carona, a pé, fez o diabo!"
Foi no meio de tudo isso que Gullar escreveu "O Poema Sujo", considerado sua obra-prima. Além das preocupações familiares, o poeta estava exilado, com passaporte vencido e pavor de morrer. "A cada manhã novos cadáveres eram encontrados" - diz no prefácio do livro. "Sentia-me dentro de um cerco que se fechava. Decidi então escrever um poema que fosse meu testemunho final, antes que me calassem para sempre... Queria resgatar a vida vivida... talvez quem sabe para encontrar amparo no solo afetivo da terra natal."
Quando o garçom leva os pratos, não há mais quase ninguém no restaurante. A não ser uma cliente que almoça sozinha e, antes de ir embora, passa para dizer que admira o poeta. O Meia Porção dispensa sobremesa. E, já mexendo o café, fala sobre sua atuação política na época da ditadura. Gullar se filiou ao Partido Comunista no dia seguinte ao golpe. "Nós estávamos iludidos, como se fosse de fato possível manter Jango no poder, criar o início do socialismo. Era uma ingenuidade." Chegou a ser convidado por Mário Alves - dirigente comunista morto durante a ditadura - a participar da luta armada, mas achou a ideia descabida. Argumentou que aquilo era uma bobagem, um suicídio. Para as próximas eleições, diz sorvendo o café, ainda não definiu o voto. Está entre Aécio e Eduardo Campos. "Só sei que não vou votar na 'presidenta' Lula."
O garçom aparece com a conta e a "quentinha" do poeta. Vamos, fotógrafo e repórter, caminhando juntos até a casa de Gullar, com uma pausa na praia para mais algumas fotos. Passamos por algumas esculturas de areia com formas de mulheres de biquínis cavados deitadas de bruços. "E isto, é arte? Pode ir para um museu?", provoca a repórter de brincadeira. É que o poeta - que há oito anos parou de frequentar as bienais - havia dito no almoço que hoje em dia qualquer bobagem que entra em um museu é chamada de arte. "É uma boa ideia mandar urubu para museu? Outra coisa: por que casal nu no MoMA é obra de arte e na casa da mulher não? Quer dizer que é o museu que faz a besteira virar obra de arte? Um casal nu na rua não é arte, mas no museu é? Hoje tudo é chamado de arte contemporânea, mas a maioria não é arte coisa nenhuma. A 'Monalisa' não precisa de museu para ser arte, mas o casal nu só é arte no museu. Vem cá, não dá!" O artesão da obra de areia se aproxima. Não está interessado na discussão filosófica, mas na "quentinha" que o poeta traz na mão. "Cara, eu não tenho cozinheira, quem vai fazer a comida pra mim?", Gullar diz, sem desgrudar de sua marmita.
No Rio, o poeta não vive desamparado. Conta com Maria, que há 20 anos trabalha para a família. Duas vezes por semana ela - "minha amiga e companheira" - limpa a casa e faz uma comida fresca. Foi Maria quem encontrou Thereza Aragão - mulher de Gullar e mãe de seus filhos - morta na cama em 1994. "Thereza tomou banho, vestiu um roupão branco e se deitou. Não levantou mais." Fumante inveterada que era, teve um enfarte fulminante. O poeta deixou o cigarro há 20 anos, quando descobriu um enfisema.
O fotógrafo pede que Gullar se sente em um banco para as fotos. Ele deixa que eu cuide se sua "quentinha", cruza as pernas e olha para a frente, contemplativo. Uma pomba entra no quadro, rodeia o poeta e arranca-lhe um sorriso.
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