• Mais moderna, a imagem de Aécio passa a espelhar o anseio por mudança contra o lulopetismo, carimbado com a marca do passado
- Folha de S. Paulo
O roteiro estava escrito. PT e PSDB haveriam de terçar armas mais uma vez, pautando as eleições de 2014 e reforçando o bipartidarismo nascente entre nós. Como o PSDB foi incapaz de exercer uma oposição articulada nos últimos anos, este esquema de polarização vacilava, o que conferiu enormes vantagens ao PT. No entanto, sempre que a oposição enfraquece, ela renasce no próprio seio do governo; e assim se fez a dissidência Eduardo Campos/Marina Silva.
A tragédia em Santos projetou Marina para o primeiro plano. Ao salvar-se do desastre, assume a figura da salvadora da pátria, que desde Jânio Quadros assombra a política brasileira. Haveria de seguir o mesmo roteiro? Vitória e crise? O papel de salvadora, porém, não resistiu aos duros ataques do PT e às estocadas do PSDB. Mas a que se deve a recuperação de Aécio? Como entender que tenha uma vitória extraordinária em São Paulo, mas perdido em Minas Gerais?
Creio que a virada de Aécio sobre Marina aponta para um fenômeno novo. As ditas "classes médias" têm demandado maior racionalidade nas discussões e decisões políticas, e não mais se deixam enganar pelo espetáculo da salvação. Aécio passa a representar a esperança de retirar a economia da estagflação em que nos meteu a política econômica de Dilma, de reforçar a associação entre capital público e capital privado, sem cair nos desmandos do neoliberalismo.
No confronto com Marina, ele vê redesenhada sua imagem política, que escapa do roteiro escrito pelo marqueteiro e das linhas gerais de uma imagem cristalizada pelos chefes de campanha, traçada ainda no velho estilo burocrático. E, sobretudo, recupera as bandeiras social-democratas do Plano Real que muitos líderes do PSDB tinham engavetado.
Aécio ainda se perde, é certo, quando, por exemplo, entra no jogo de Dilma e passa a discutir o velho tema das privações feitas durante a administração de FHC. Não que elas deixaram de ser importantes, mas vistas de hoje, quando se reforça entre nós um capitalismo de conhecimento, pouco importa o estatuto jurídico de uma grande empresa, quando ela é posta em face de suas obrigações sociais.
Um Estado moderno --e o nosso ainda não o é plenamente-- tem condições de controlar sem sufoco qualquer empresa pública ou privada, impedindo-as tanto de forçar a exploração do trabalho quanto de se tornar fontes de corrupção. O caráter público da Petrobras não a salvou do maior achaque de sua história.
Em contrapartida, na medida em que a imagem de Aécio se torna mais moderna, mais prenhe de futuro, ela absorve facilmente as acusações de corrupção contra ele mesmo e seu partido, assim como reforça por contraste os pecados dos adversários. Ela passa a espelhar o anseio por mudança contra o lulopetismo, carimbado com a marca do passado. Não é assim que se explica a onda anti-PT que hoje varre o Sudeste?
Para reforçar nossa democracia creio ser preciso fincar os pés no real. Assumir a política como ela é, quando todos nós, aliados e adversários, possamos nos projetar uns nos outros, cada um reconhecendo no outro o espelho que tende a revelar nossas particularidades. Então, separados e juntos, tratar de ampliar os controles de nossos órgãos públicos, multiplicá-los, reforçando uma burocracia estatal competente e longe do aparelhamento político.
Cabe, pois, de um lado, retomar o sentido público das instituições do Estado, acostumá-las a prestar contas de seus afazeres e negócios. Por outro lado, e não menos importante, é necessário melhorar a qualidade de nossas instituições de ensino, assim como reforçar seu caráter democrático e plural, lutando para que sejam orientadas a criar homens e mulheres livres, em vez de "cidadãos" de uma "pátria" sem fissuras, ou das igrejas de consumo.
Não será possível até mesmo esperar que cada profissional se forme visando a melhoria de seu próprio desempenho nos quadros de uma forma de vida mais autêntica? Espero que a vitória de Aécio Neves nos dê um choque de realidade.
José Arthur Giannotti, 84, é professor de filosofia da USP e pesquisador do Cebrap. Acaba de lançar o e-book "A Política no Limite do Pensar" (Companhia das Letras)
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