- O Estado de S. Paulo
Termina amanhã, domingo, aquela que muitos consideram a mais virulenta e imprevisível eleição presidencial da História brasileira. O que deveria ter sido uma festa da democracia se arrastou como um drama alimentado por perfídias, acusações sórdidas e tramoias de destruição pessoal, banhado por uma taxa de intolerância e sectarismo difícil de ser esquecida. A gangorra das pesquisas mostrou um eleitorado dividido e inseguro, o bate-boca nas redes sociais revelou uma cidadania sem educação política.
Não foi a primeira eleição a se valer de ofensas e jogo sujo no Brasil recente. Em 2014, porém, a campanha negativa chamou a atenção, sobretudo, pela intensidade e pela reverberação imediata, movida a internet. Plantados de forma cirúrgica, boatos e difamações cruzaram a arena da disputa, repercutiram com rapidez e dificultaram que o debate eleitoral ganhasse dignidade política.
A campanha negativa também se destacou por ter sido largamente empregada por um partido, o PT, que sempre se apresentou como alvo preferencial de ataques preconceituosos feitos pela mídia e pelas elites. Por ser governo e possuir muitos recursos políticos, o PT deu o tom, determinando o ritmo e o estilo da corrida eleitoral. Escolheu as armas do combate, pagando um preço por isso. Deu corda a um "antipetismo" que não lhe é favorável, sofreu derrotas em Estados importantes e viu sua bancada no Congresso Nacional sofrer séria redução. Mostrou-se aquém de uma esquerda democrática moderna, capaz de decifrar o capitalismo contemporâneo e a sociedade tecnológica que desponta. Terá dias ruins pela frente.
Mas não foi somente o PT a errar e a perder. Perderam e erraram todos, sem exceção, a provar que o sistema político ruiu e novos arranjos partidários se tornaram urgentes. Sem eles e sem uma boa reforma a política continuará colonizada pelo econômico e ainda mais exposta a escândalos, os governos permanecerão medíocres e as oposições democráticas, impotentes.
Por que chegamos a este ponto? Algo aconteceu para que uma importante, mas rotineira competição eleitoral, na qual está dada a possibilidade de alternância no poder, se convertesse numa batalha campal sem parâmetros éticos e incapaz de cumprir o que se espera de um debate presidencial: apresentar ideias e propostas para o futuro.
Ficaremos um bom tempo a nos perguntar como permitimos que isso acontecesse.
Águas que corriam juntas, ou paralelas, se turvaram e se separaram; amigos viraram inimigos; pais e filhos deixaram de discutir política em casa; confrontos físicos substituíram o debate de ideias, líderes políticos nacionais transformaram-se em caixeiros viajantes da infâmia, o engajamento ideológico converteu-se em alavanca de estigmatização.
Foi um período assustador, vivido sob o signo do "confronto político" e da morte aos inimigos, numa temperatura elevada ao extremo sem que houvesse, a rigor, nada que a justificasse, a não ser uma cobiça desmesurada pelo poder, o despreparo para processar divergências, alguns fantasmas ingênuos e certas crenças toscas. Apoiadores convertidos em justiceiros, teleguiados por centrais de desinformação, fanatizados por suas convicções, sem tolerância, sem critério, numa flagrante demonstração de rusticidade política e de ausência de perspectiva cívica. Juntos, abraçados e misturados, ajudaram a promover uma inédita guinada da sociedade para a direita mais bestial, a cavalo de uma leitura falsa da realidade brasileira, qual seja, a de que o País estaria prestes a ser "bolivarianizado" ou às portas de uma contrarrevolução que roubaria a comida dos mais pobres.
Se esse padrão prevalecer, o que esperar do próximo ciclo governamental? Haverá nele disposição, serenidade e força persuasiva para trazer os brasileiros para a política democrática e o debate de ideias? Quem quer que vença amanhã terá equilíbrio e generosidade para trocar o toque marcial pela pomba da paz, chamando a sociedade para um convívio mais fraterno?
Vença quem vencer, a vida continuará, mais forte do que a indigência dos políticos, a frouxidão dos partidos, a vacuidade dos discursos, a caça às bruxas. Seguirá mostrando que a política precisa mudar. Com reformas institucionais, renovação cultural e refundação partidária, mas também com um gigantesco esforço de educação política, que dê aos jovens sobretudo, mas não somente a eles, uma chance de entrar com o pé direito no fascinante e perigoso universo do poder e do Estado.
Os políticos foram patéticos nos debates, vulgares nas maneiras e nos discursos, fraquíssimos em proposição, cínicos demais na capacidade de mentir, tergiversar, iludir e sofismar. Convidaram a sociedade ao rebaixamento cultural. Em algum ponto da estrada serão castigados. O vencedor do segundo turno herdará um reino estagnado, manchado pela corrupção,
tensionado pela mentira e cujos habitantes acordarão segunda-feira indiferentes à alegria sem graça dos vencedores e à tristeza calculada dos perdedores, pouco ligando para os excessos e a bizarrice daqueles que se apresentaram como salvadores da Pátria. Amanhã será outro dia, impulsionado pela esperança e pela vontade de mudar.
O próximo ocupante do Planalto governará um País fendido e repleto de desafios. A governabilidade tenderá a ser mais difícil. Precisaremos de muita política com P grande, para que se possa tornar viável a pacificação dos espíritos e a ampliação das possibilidades de governança democrática. A ninguém deve interessar a generalização da "guerra civil" que hoje já existe de modo focalizado. Todos, políticos e cidadãos, vencedores e perdedores, terão de manifestar maior desejo de fiscalização dos governantes e de recomposição social. Será preciso alcançar um novo pacto de convivência.
Da combinação de discernimento político e disposição participativa dependerá bastante o futuro do Brasil que sairá das urnas de amanhã.
Professor titular de Teoria política e diretor do Instituto de Políticas Públicas e Relações Internacionais da UNESP
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