- O Globo
Cerimônias, festas, congraçamentos, celebrações e solenidades me fascinam. Tanto que, na década de 70, estudei o carnaval como um ritual, penso que o tirei das páginas de curiosidade para situá-lo como um ritual de passagem coletivo de modalidade orgástica, cuja principal dimensão social seria, além de tornar visível e marcar o tempo, a de momentaneamente amaciar um sistema engessado, autoritário e arrogante como o nosso.
Mas sempre tive, em paralelo, um desconforto com os rituais. Eles me emocionavam porque, sendo um sofredor com o real, os rituais e as festas representavam um mundo ideal - a vida como ela deveria ser. Sobretudo, quando tinham um centro definido como ocorre com as festas de aniversário, os casamentos e os funerais, os quais - como ensinou Arnold Van Gennep num livrinho repleto de simplicidade e sabedoria, publicado em 1909, intitulado precisamente "Os ritos de passagem" - têm como denominador comum a dialética complexa das entradas e saídas. Uma nova idade, casa ou mundo, como ocorre quando se morre.
As festas de formatura me impressionavam, bem como as missas solenes. Mas nada superava a expectativa das "posses presidenciais" que, inundadas de pesporrência, não eram testemunhadas, exceto pela elite. Mas nos jornais meu pai lia o discurso do "supremo magistrado da nação", ao mesmo tempo em que pesava o Ministério feito de figuras públicas consagradas e conhecidas naqueles tempo de Brasil pequeno e reacionário.
No dia 1º, assisti, com parte da família, à posse do segundo mandato da presidente do Brasil. E constatei o paradoxo de que havia mais novidade, esperança e energia na posse irradiada e filmada de Getúlio Vargas (em 1951!) e na de JK (em 1956!); bem como na tevisionada do Lula 1 - esqueçamos como manda a desmemória petista, a de FH -, do que neste pesporrento e vazio rito de passagem, transmitido impecavelmente ao vivo e a cores de Dilma Rousseff.
Posse de uma "democrata" que, nos seus discursos, sequer mencionou a oposição que legitima a sua vitória eleitoral e não um acabado triunfo de "projeto político". Um triunfo eleitoral marcado, aliás, por um uso brutal e sem pejo do governo como máquina eleitoreira.
Rememorando a campanha sem pensar, mas já pensando neste terceiro turno que será o de Dilma contra Dilma, reflito que é preciso distinguir política de processo eleitoral; povo de cidadão-eleitor e, ambos, de "pobres" ladrões ou honestos, como disse o ilustre ex-ministro-chefe da Secretaria Geral da Presidência da República Gilberto Carvalho, que se defendeu do que jamais foi acusado. Quem roubou a Petrobras não foi ele que, para confundir, defende os meliantes que se assumiram como trapaceiros, num processo de barganha legal. Numa democracia, um mero e humilde voto a mais garante, sem nenhuma dúvida, a vitória e a posse de um candidato no cargo. Não é isso que coloco em pauta, pois não sou golpista e reitero que o "terceiro turno" acaba de começar. Mas uma vitória por uma margem homeopática legitima ou confirma a vitória incondicional de um "projeto de poder" no sentido do lulopetismo, mencionado no discurso da presidente? Um projeto no qual a própria competição eleitoral democrática correria o risco de ser canibalizada pela tirania populista?
Tudo isso num ritual, cuja pesporrência teológico-jurídica luso-brasileira obriga a ler fórmulas ocas e, ao fim e ao cabo, fez do presidente do Senado a principal figura. Aliás, foi Renan Calheiros quem, ofuscando a ritualística da investidura presidencial, fez o discurso de maior peso, equilíbrio e "pesporrência" , como diria meu pai. Foi ele, e não a democrática presidente autoenfaixada, quem citou com propriedade o papel indispensável da oposição numa democracia liberal. Pois ela reclamando e cobrando, mas deixando de lado o golpe baixo do terrorismo eleitoral, impede que o vitorioso se transforme num déspota; ou, quem sabe, num vulgar e barato estelionatário.
A "pesporrência" - palavra com a qual defino o que vi - simplesmente traduz o fato testemunhado: a exibição de autoridade e arrogância, o pedantismo vazio, pois como pode alguém que já vem governando por quatro anos os piores quatro anos de um governo brasileiro, dizer que o povo quer mais e melhor do mesmo? Ou, pior que isso, do que nem ela, nem muitos dos governadores que com ela também fizeram a mesma passagem, fez quando governava?
Como dar crédito a quem governa, recebe críticas pelo que insiste em não fazer, e - no rito de posse - promete solenemente fazer o que disse que não faria quando governava recebendo o espírito da oposição?
Afinal, fizemos uma transição ou ficamos com a nossa costumeira pesporrência?
Roberto DaMatta é antropólogo
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