- Folha de S. Paulo
• A morte de Brizola enterrou o que havia sobrado do ideário trabalhista. Hoje não passa de abrigo para o neopeleguismo sustentado pelo Estado
A esfera trabalhadora do Brasil está órfã de lideranças. Não há perfis a expressar o ideário clássico do trabalhismo --o sentimento de pertinência de classe, o culto às instituições sociais, a valorização do trabalho, a união de todos sob a mesma bandeira etc.--, nem organizações capazes de defender posições claras no espectro ideológico.
As massas trabalhadoras formam aglomerados dispersos, abrigados em espaços ocupados por centrais sindicais, cuja preocupação central é garantir um quinhão do bolo de recursos do sistema confederativo.
Os comandos dessas entidades têm sido entregues a pessoas com perfis que lembram os dos pelegos do passado, agarrados aos braços da máquina estatal, com um olho na perpetuação do poder e outro na moldura partidária, onde buscam abrigar sua identidade.
Ao perceberem que os partidos podem ser extensão de seu poder, as centrais inauguram a era do "sindicalismo partidário", um bom empreendimento para seus negociantes políticos. Afinal, ali pode florescer um promissor feudo eleitoral.
E onde está o trabalhismo histórico, cujas sementes foram semeadas por Getúlio Vargas, nos anos 30, por João Goulart e Leonel Brizola, nos anos 60? Definhou ao longo das últimas décadas.
Suas raízes começaram a secar nos tempos áridos da ditadura de 1964. A partir de 1979, em razão da abertura política, tentou reaparecer, mas o velho PTB cindiu-se. Virou ser invertebrado quando passou a ser objeto de disputa entre Brizola e Ivete Vargas, neta de Getúlio, que acabou ficando com a sigla. Ao ex-governador sobrou o desafio de fundar o PDT. O legado getulista dividia-se entre os dois partidos.
Capengando numa vereda cheia de curvas e sob o refluxo ideológico provocado pela queda do Muro de Berlim, em novembro de 1989, o velho PTB esmaeceu o verniz das lutas trabalhistas.
Enquanto isso, o PDT, mais pela performance do perfil carismático de seu principal dirigente, passou a acenar com a bandeira de um "socialismo moreno", possivelmente esculpido com a régua do maior teórico do trabalhismo, Alberto Pasqualini, que dizia: "Nem Nova York nem Moscou. O trabalhismo brasileiro é autóctone e crioulo".
A morte de Brizola, em 2004, enterrou o que sobrara do ideário trabalhista. Daí por diante, o país abriu o ciclo do chamado sindicalismo de resultados, pragmático e burocrático, com seu cordão umbilical amarrado ao corpo do Estado.
Convém lembrar que, em 1980, o trabalhismo passou a ser também referência central do PT, por inspiração de seus idealizadores, o setor esquerdista da Igreja Católica, intelectuais, parcela do PCB e metalúrgicos do ABC paulista.
Em 35 anos, no entanto, o PT nunca conseguiu unir as bandas dispersas das massas trabalhadoras, por brandir um discurso desagregador e manter uma visão unilateral do poder sobre as estruturas do Estado. O que sobrou do trabalhismo? Um ente sem pé nem cabeça.
Hoje não passa de abrigo para o neopeleguismo sustentado pelo Estado. Perdeu significado no dicionário da política. Sete centrais sindicais disputam espaço, dividindo as representações das categorias profissionais. Emergem parcerias entre centrais e partidos, sendo mais evidente o casamento entre CUT e PT, duas faces da mesma moeda.
Diante da ruína do edifício petista, trabalhadores de muitos setores percebem, desmotivados, a ação desnorteada de sua representação. Pergunta-se qual o ideário das entidades e não se tem resposta.
A CUT tateia na corda bamba, tentando, ao mesmo tempo, ser contra e a favor do governo. Qual o papel do maior líder sindical da história contemporânea, Lula, na defesa do trabalhismo? Difícil responder. As bandeiras que Lula levantou tornaram-se refrões sem sentido.
Qual é a real situação dos trabalhadores, quem canaliza suas demandas? Centrais preocupadas com os cofres, como no atual combate contra a terceirização de serviços?
O fato é que as massas trabalhadoras começam a expressar desesperança, estão temerosas. Trabalhadores da classe C que vieram da classe D temem voltar ao antigo habitat. Sentem-se órfãos.
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Gaudêncio Torquato, 70, jornalista, é professor titular da USP e consultor de política e de comunicação
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