- O Estado de S. Paulo
Primeiro, Dilma Rousseff meteu os pés pelas mãos e perdeu totalmente a popularidade que nunca teve antes na História deste país, mas ganhou como mimo do padrinho. Depois, abusou tanto das mentiras que terminou por ficar também sem credibilidade. Agora, ela tem dado sinais de que começa a deixar pelo caminho toda a compostura.
É possível chegar a essa conclusão sem levar em conta as descomposturas que costuma dar em seus subordinados quando contrariada e nas quais abusa na intimidade do palavreado chulo, da mesma forma como expõe seu raciocínio confuso quando fala em público, lendo ou de improviso. O episódio narrado por Natuza Nery e Marina Dias na Folha de S.Paulo de domingo, contudo, perturba muito menos pelo destempero do uso exagerado de um linguajar rasteiro e desrespeitoso, tratando o ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, como lacaio, que ele não é, mas um servidor público com tarefas importantes a cumprir para preservar a natureza republicana das coisas. O episódio descrito na notícia é repulsivo, mas deixa de ser relevante, já que a presumida vítima poderia ter reagido por honra ou vergonha, e não o fez.
É esdrúxulo acusar Cardozo de haver estragado (para usar, em respeito ao estômago do leitor, o verbo mais próximo do palavrão que ela teria berrado) uma viagem aos EUA em que pretendia apresentar uma agenda positiva para tirar o pé da crise. Mas, pelo que se narra dos bastidores palacianos, é useiro e vezeiro. Sua fúria não respeita minimamente as normas comezinhas de civilidade. Mais grave é a reprimenda reproduzida na reportagem: “Você não poderia ter pedido ao Teori (Zavascki) para aguardar quatro ou cinco dias para homologar a delação?”.
O palpite infeliz tem várias conotações e todas são comprometedoras. A primeira é que abona a informação dada pelo ex-diretor do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) Herton Araújo de que teria sido impedido de divulgar o aumento da extrema pobreza antes da reeleição dela.
Essa é uma das várias mentiras que Dilma contou no palanque ao eleitor, tendo a vitória como única meta. É coerente com o lema “a gente faz o diabo para ganhar uma eleição”, que explicita a hipérbole capaz de mostrar que nem o inferno é seu limite quando se trata de alcançar o poder.
A cobrança mal-educada ao ministro, com quem ela conta sempre estar a serviço dela, e não da Nação, da forma que é exigida no Estado Democrático de Direito, conduz ao passo seguinte: ela também faz o que só o capiroto aceita para não ser apeada do poder. Já que ninguém contestou as repórteres e o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) citado no vitupério não pediu satisfações, Dilma decidiu brigar com Montesquieu.
Era só o que faltava, dirá o leitor desatento. Mas o atento sabe que a divisão entre os três Poderes, pregada pelo barão francês na virada do século 17 para o 18, tem sido deixada de lado na peculiar democracia à brasileira desde que, depois da Constituição de 1988, se convencionou adotar o híbrido presidencialismo de coalizão. Neste, a barganha permanente de óbolos e favores entre senhores do Executivo e “nobres” parlamentares tornou a República uma casa de penhores no limiar de virar um lupanar. Não se trata de uma invenção petista: vem do tempo em que Lula rosnava na oposição. No entanto, o exemplo mais bem-sucedido dos resultados práticos dessa relação espúria aparece diariamente no noticiário fértil e podre da Operação Lava Jato, na qual Executivo e Legislativo chafurdam na lama sem pudor nem rubores.
Só que o País sentiu há pouco a nova sensação de respirar um ar menos fétido ao assistir pela televisão às sessões de julgamento do mensalão, em que delinquentes tidos como heróis da Pátria pelos donos dos Poderes tiveram seus crimes descobertos, investigados, relatados e apenados. Foi como se, de repente, as distinções de casta tivessem desaparecido.
E agora Dilma acaba de pular a cerca da autonomia dos Poderes. Seu encontro às escondidas em Oporto com o presidente do STF, Ricardo Lewandowski, foi o passo em falso que coroou os percalços que a têm feito penar no pior primeiro semestre de um governo em 193 anos de independência.
O Tribunal de Contas da União deu-lhe prazo para explicar as tais “pedaladas” fiscais, denominação que muito desagrada a seu anspeçada jurídico Luís Inácio Adams. O Tribunal Superior Eleitoral pôs em dúvida as contas de sua campanha. E chamou o empreiteiro e delator premiado da Lava Jato Ricardo Pessoa para testemunhar que barganhou doações para a candidatura dela em troca de favorecimento em contratos de serviços superfaturados para a Petrobrás.
Neste momento, qualquer contato informal dela com qualquer ministro do STF seria suspeito. E a suspeição se amplia ao se constatarem as circunstâncias. A reunião não constou das agendas formais dos participantes. É inverossímil a coincidência da parada em Portugal quando Lewandowski – que decidirá sozinho no plantão de recesso se manterá, ou não, a delação premiada de Pessoa, podendo até tirá-lo da cadeia – estava por lá. Igualmente absurda é a versão de que trataram do aumento abusivo dos salários do funcionalismo do Judiciário, o que reduziria o presidente desse Poder a líder sindical de subalternos. Recorde-se que o tema é da alçada do ministro da Fazenda, Joaquim Levy, encarregado do caixa, mas quem compareceu ao convescote foi o da Justiça, José Eduardo Cardozo. E foi ele quem o definiu como “casual combinado”, fazendo do acinte institucional uma mera contradição semântica.
Zavascki nada tem feito para justificar a inclusão de seu nome nos disparates de Dilma. Restará a Lewandowski seguir-lhe o exemplo, não adotando na Operação Lava Jato providência alguma que destoe da conduta do relator do caso no STF. Uma súbita alteração de rumos poderá custar caro para todos eles. E para o Brasil!
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*José Nêumanne é jornalista, poeta e escritor
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