- O Estado de S. Paulo
Não foi só a nota de bom pagador do Brasil que sofreu downgrade na semana passada. O sistema eleitoral brasileiro também foi desvalorizado, também andou para trás – só que ninguém viu. Enquanto todos os olhares se voltavam à perda do grau de investimento do País, a Câmara dos Deputados aprovava na correria de sempre, no mesmo dia e na mesma hora, uma reforma eleitoral cujo texto e extensão só se conheceram depois de consumada a votação. Os deputados oficializaram o obscurantismo.
Graças à reportagem de Daniel Bramatti, sabe-se agora que a Câmara, entre outros retrocessos, tornou legal a lavagem das doações ocultas de campanha. Transformou em lei o que era um truque, um jeitinho. A partir das próximas eleições, não será mais possível saber, por exemplo, que o presidente da Câmara, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), elegeu-se com dinheiro da Ambev, da Rima Industrial e da Telemont Engenharia. Ou que o relator da reforma, Rodrigo Maia (DEM-RJ), foi apadrinhado pelo banco BMG.
A nova legislação proíbe a doação direta de empresas a candidatos. A partir de agora, a pessoa jurídica que quiser investir na política terá de, obrigatoriamente, pagar pedágio para o partido. Todo o dinheiro doado passará por seus comitês financeiros. De lá, seguirá lavadinho e anônimo para os políticos. Na prestação de contas do candidato só aparecerá que o dinheiro veio do seu partido. E, na do partido, que ele deu tanto para o candidato, sem declarar o nome do doador original.
A mudança está no 12.º parágrafo do artigo 28 da nova lei: “Os valores transferidos pelos partidos políticos oriundos de doações serão registrados na prestação de contas dos candidatos como transferência dos partidos e, na prestação de contas dos partidos, como transferência aos candidatos, sem individualização dos doadores”.
O efeito prático da reforma obscurantista aprovada com o voto de mais de 300 deputados é que: 1) a empresa saberá se a quantia que doou foi a mesma que o candidato que ela pretendia financiar recebeu, 2) o partido saberá de quem recebeu o dinheiro e para quem repassou essa grana, 3) o candidato saberá quanto recebeu do partido e poderá conferir com o empresário doador se o valor bate. Mas o eleitor e a Justiça eleitoral não saberão mais qual empresa financiou qual candidato. A sociedade ficará no escuro.
Essa mudança fundamental da legislação poupa os políticos do constrangimento de o público ficar sabendo que são financiados pela indústria de armas, ou que fazem parte da bancada do bife (financiada pelo frigorífico JBS), da cerveja, das mineradoras, das empreiteiras, dos bancos, das seguradoras – e por aí vai.
Para os financiadores, também é conveniente porque fica mais difícil de estabelecer uma ligação direta entre a empresa e um ou mais políticos. Assim, quando esse político assinar um contrato com aquela empresa, aprovar uma lei que a beneficie, barrar uma convocação de seu dono para depor em uma CPI, ninguém poderá afirmar com certeza que ele está retribuindo o favor pelo dinheiro que recebeu da empresa durante a campanha eleitoral.
Para os partidos e burocratas partidários, a nova legislação é um presente de Natal antecipado. Terão um poder ainda maior sobre quais candidatos serão eleitos ou não. Bastará controlar o fluxo financeiro de suas campanhas. Aos amigos, repasses fartos e rápidos das doações. Aos rebeldes, atrasos e desculpas – ou nem isso. Serão estrangulados pelo garrote do caixa partidário.
A democracia, tal qual o crédito, é baseada na crença em mitos. Assim como credores creem na nota dada por uma agência a um país, a sociedade precisa crer que o sistema eleitoral é limpo. Sem essa crença, a eleição não tem legitimidade. Sem legitimidade, não há democracia. Ao acabar com a transparência do sistema, a Câmara está exigindo muita fé do eleitor. Talvez demais.
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