- O Estado de S. Paulo
Nos últimos meses o Brasil vem assistindo a uma ofensiva hostil e facciosa de setores poderosos da sociedade civil e política contra órgãos do Poder Judiciário, em particular contra o Ministério Público Federal (MPF) e o juiz Sergio Moro, responsável pela Operação Lava Jato. Essa ação coativa tem mobilizado desde altos mandatários da República, passando por eminentes juristas e respeitados economistas, até franjas da mídia, partidos políticos, empresários e mesmo – pasmem – sindicatos e líderes de movimentos sociais.
A presidente da República, Dilma Rousseff, chegou a proclamar, em discurso, que “a sucessão de escândalos da Operação Lava Jato provocou instabilidade política e econômica e levou à queda de 1% do PIB”. Empresários e economistas, por seu turno, afirmam que essa operação inibe o crescimento e tem efeitos diretos na arrecadação e no emprego, além de estar solapando o know-how da engenharia nacional ao castigar severamente as grandes empreiteiras.
Proeminentes juristas e/ou porta-vozes de grandes bancas advocatícias, de outro lado, acusam os condutores da operação judicial de arbitrariedade, autoritarismo, abuso de poder, “terrorismo penal”, desrespeito aos ritos do Direito, excesso de rigor nos inquéritos, prejulgamentos baseados em denúncias sem provas (delações), desdém pelo direito de presunção de inocência – líderes partidários e parlamentares, empresários e executivos estariam sendo vitimizados por essas e outras mazelas jurídicas. E não faltam aqueles que, indignados, ordenam que o governo, por meio do ministro da Justiça, submeta a seu jugo a Polícia Federal e o MPF e os ponha no “devido lugar” – vide a atitude da direção petista e dos presidentes da Câmara dos Deputados e do Senado.
Os responsáveis pela operação, dizem eles, na ânsia de “passar o País a limpo”, têm posto em risco as instituições representativas, o bom funcionamento do mercado e o fluxo dos negócios. Além dos prejuízos à economia, têm provocado a descrença na democracia e a indisposição popular contra os políticos e seus partidos, perturbando a governabilidade.
Essa reação não é fortuita. Afora envolver grandes negócios e interesses, está fundada numa cultura política com profundas raízes históricas. Tornou-se lugar-comum o dito “para os amigos tudo, para os inimigos a lei”. O princípio segundo o qual “todos são iguais perante a lei” é sistematicamente transformado em letra morta. Em vez de servir para inibir o arbítrio e a prepotência tanto do poder estatal quanto do privado, a lei é, comumente, convertida em instrumento de admoestação e punição de muitos para a manutenção de privilégios de alguns poucos.
Roberto DaMatta há tempos constatou que quem “cumpre a lei no Brasil é o povo, os inferiores, os subordinados”. Os privilegiados, grandes empresários (urbanos e rurais), políticos e burocratas do alto escalão e seus apaniguados procuram sempre que podem estar acima e/ou à margem da lei e se valem, constantemente, da transgressão para garantir os seus interesses. Tratam, no mais das vezes, os bens públicos como direito adquirido e justificam a ilicitude e as vantagens com naturalidade, atribuindo-as a fins nobres.
Assim, enquanto para os de cima as normas do Direito são relativizadas e flexíveis, para os de baixo devem ser aplicadas com rigor.
Não é demais afirmar que para os poderosos sempre foi prática corrente a indistinção entre o lícito e o ilícito, o legal e o ilegal, a transgressão e a observância da lei. Essa cultura e tais práxis políticas são tão resistentes que impregnam todos os poros do tecido social e têm uma força incomensurável de cooptação de grupos emergentes, mesmo aqueles outrora radicais. Isso talvez explique a conversão de dirigentes petistas – tornados novos donos do poder e recém-ingressos na elite dominante – às vantagens do patrimonialismo, como forma de preservar seu mando e garantir os meios de ascensão social dos seus.
Não obstante o inconformismo manifesto dessas forças sociopolíticas, todas as ações contestatórias – contra os responsáveis pela Operação Lava Jato e a favor dos investigados, suspeitos e réus – foram denegadas nas diversas instâncias do Judiciário, mesmo sendo movidas por influentes bancas e proeminentes advogados, com honorários consideráveis. Mas, atenção, é necessária precaução, pois a capacidade de influência dessa gente é desmedida – demonstração desse poder é a recente decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) “fatiando” e desmembrando o processo judicial, o que pode dificultar e até mesmo impossibilitar a punição de suspeitos e denunciados na operação.
Esses setores, familiarizados com a transgressão e afeiçoados à apropriação da coisa pública, ainda não se deram conta de que há algo novo na realidade histórica brasileira pós-1988. A Constituição federal trouxe, entre outras inovações, pressupostos para a efetivação da igualdade de condições no usufruto de direitos. Da mesma forma que introduziu elementos que fortaleceram e deram maior autonomia ao Poder Judiciário, concebendo-lhe um protagonismo sem paralelo, e/ou permitiram a renovação do Ministério Público – de que o juiz Sergio Moro é caso exemplar.
Essas novas condições dificultam a ilicitude, inibem privilégios e propiciam alguma transparência nos negócios públicos. Derivam daí o inconformismo e a hostilidade contra aqueles que resolvem fazer justiça para todos ou entendem que a lei vale também tanto para os poderosos consagrados quanto para os de plantão.
Obviamente, essa nova situação está ainda refreada e requer, como condição sine que non, a retomada do curso progressivo da democracia e o prosseguimento da generalização dos direitos de cidadania, acompanhada, especialmente, da publicização do Estado.
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* José Antonio Segatto é professor titular de sociologia da Unesp
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